sexta-feira, 20 de março de 2009

Vidas vãs - 3

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Para aqui vivemos, esquecidos do mundo, como esses que há tempos chegaram aí ao povo, uns que foram levados para a guerra da Flandres. Escorreitos eram eles na hora da partida e assim vêm devolvidos como refugo, sem tino nenhum, transtornadas as cabeças dos gases das granadas, e arrombados os peitos do lamaçal gelado das trincheiras. Passam os dias cismáticos ao sol, quem saberá dizer em que paisagens se lhes perdem os olhos, para eles está a vida feita, se não ficou antes toda por fazer, acaso será esta, entre todas, a melhor solução, alhear-se de tudo.
O terceiro filho vem aí, para que estranhas guerras virá ele fadado, mas antes que chegue vamos nós ao mercado do Rabaçal e lá havemos de aprender, ou alguém nos ensinará, como se fazem os negócios, como se compra a este para vender àquele e guardar algum lucro, sempre será vida melhor, um porco ou uma cabrita nova, uma vitela se Deus quer, lá fumaremos um cigarro em sociedade para botar figura, e quando pudermos pagaremos uma rodada ao adjunto em volta, que sempre há-de ser a vida de negócio mais folgada do que esta que fazemos, e aprenderemos o ligeiro jogo das palavras que enganam a miséria alheia, ingénua seja ela, com essa podemos nós melhor que com a nossa própria. E em chegando a ocasião beberemos demais, e arrastaremos as noites por estúrdias e estancos, que um homem é do mundo e só à mulher competirá enrolar no avental as lágrimas da noite, no silêncio do lume que resiste, ou no choro dum filho inquieto, feita fora ela doutra coisa que não da costela do homem original.
E, quando chegar o terceiro filho, havemos de lhe contar ao serão a história do outro, que histórias são essas que estás sempre a tirar da cabeça, homem não sei se de Deus ou do diabo. Um dia, era ao serão, estava o outro em casa, e os filhos queixavam-se do escasso pão. E vai ele, que bom seria, mulher, termos nós dinheiro para comprar uma cabra, havíamos de levá-la à vez a pastar por esses caminhos, para ela encher a barriga de botões de silvas bravas, quando o sol, na primavera, constrói jardins nas paredes. E quando a noite chegasse, e a cabra voltasse a casa, íamos colher-lhe o leite, e as noites seriam longas, e a família cresceria, já viste mais alegria. Mas eu não gosto de leite, tornou o filho mais novo. Quando o Outono chegar, e as silvas ficarem duras, subo ao freixo do valado, e do mais viçoso ramo, se há-de fartar nosso gado, disse o outro, confiado. Mas eu não gosto de leite, insistiu o desgraçado. Numa breve conclusão, perdeu o outro a cabeça e ali mesmo obrigou o filho biqueiro a engolir duas grandes malgas de leite quente na companhia dos irmãos, que assim dormiram toda a santa noite, de barriguinha calada, o que seria do povo sem este grande engenho milagreiro.
Mas nós não temos dinheiro, nem cabra havemos de ter. E assim irás tu, mulher, quando o Outono vier, apanhar as castanhas ao baldio de Casteição, nunca tivemos um lugar nosso onde plantar um castanheiro, que este baldio só é nosso por ser de todos, acaso devia ser assim o mundo inteiro. E levarás um filho na barriga, e outro nos braços, e um terceiro na mão, para que o ramo vá completo e composto, e para que os anjos todos das varandas do céu exultem ao ver-te assim seguir engalanada, estrada fora, por ti não se acabará o rebanho dos cordeiros de Deus. E quando voltares a casa não me encontrarás, porque eu enrolei o fato do nosso casamento numa trouxa e fui por esse mundo, não me perguntes porquê, se o não souberes, nem queiras saber por onde, que eu também o não sei.
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