terça-feira, 27 de outubro de 2009

Portugalmente (68)

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Em silêncio atravessa Paipenela, onde decide abastecer-se de água, que a sua já se acabou. Pára num pequeno largo e vai por essas ruas, encostado à sombra das paredes, a escapar aos dentes da canícula. E está a pontos de perder as esperanças quando chega ao portão de Benjamim, que anda atarefado no quinteiro, a pôr em ordem a carrinha dos transportes para a Europa.
- Os passageiros são de muitos lados, vêm donde os houver! Às vezes de Lamego, de Pinhel, d’ Além-Doiro, e a maior parte vai para a Suíça. Só é preciso i-los buscar a casa!
Enquanto fala das suas viagens, Benjamim encaminha o viajante a uma torneira, ao fundo do quinteiro. Mas logo este fica preso à porta duma loja atravancada de rodas de automóvel. Há jantes de aço e outras de liga leve, e rimas de pneus de todos os desenhos. Se fossem de uso caseiro, a carrinha de Benjamim podia dar muitas voltas ao mundo.
- Trago-as na volta das viagens, quando não há outra carga. Sempre há-de haver quem as queira!
- E onde é que arranja estas coisas?!
- Estas coisas não se compram! – cumplicia Benjamim.
O viajante põe-se a congeminar. É madrugada nessas ruas da Europa, não custa nada pôr um carro nos calços e levar um par de pneus em bom estado. Por cá estas pechinchas têm muita procura. E aos portugueses, que toda a vida trouxeram nos pés sapatos de heróis defuntos, dão muito jeito os pneus usados da Europa.
Ao viajante não seduz o negócio. Mas não são dele as contas deste rosário, enche a garrafa de água e mete a língua na caixa. Sorte sua foi ter encontrado o atarefado motorista, pois não há, por estas partes do mundo, outro sinal de gentes ou de bichos. A canícula da hora há-de ser a explicação.
E lá segue, estrada fora, a pensar no que esta vida é, quando surge a tabuleta a apontar-lhe o Santuário da Vila Maior. Mais levado pela curiosidade do que por viveza de ânimo, e menos ainda por devoções que não tem, o viajante seguiu a indicação. Trazia assinalada no roteiro a existência dum lugar antigo, onde já vivia gente antes de cá chegarem os romanos, e depois deles os godos, e mais tarde os sarracenos, muito antes das conquistas dos cristãos. Não estava à espera do santuário que a tabuleta promete, e resolve ir tirar a coisa a limpo.
Mesquinha mas escorreita, a estradinha é obra dos mesmos fundos a que já nos habituámos, e desemboca nas costas duma capela, fronteira a um terreiro arrelvado. A capela atesta devoções recentes, de tão cuidada que está. E o viajante já conhece este vezo da Santa Igreja, de instalar oragos milagreiros onde os povos antigos se fixaram, e onde a história andou mexendo há muitos anos. Porém, não lhe faltando gerais e particulares motivos, se ele trouxesse ilusões de maravilhas e milagres, o mais certo era sair daqui de mãos a abanar. Que o prometido santuário mais não é que um simplíssimo lugar de romarias, onde mais contam as folganças do corpo que os recolhimentos de alma. Ao fundo do terreiro há um renque de carvalhos, a sombrear umas mesas de pedra. E ao lado um palanque de cimento, a encobrir um morro de fraguedos, obra deste benfeitor que deixou aqui o nome numa placa.
O viajante já subiu ao morro. E confirma o que diz o seu roteiro, tão claros se mostram nele os vestígios dum castro primitivo. Razão seria, e da máxima força, para o manter resguardado de palanques de arraial. Mas não é esse o entendimento das gentes destes lugares, que não gastam cera com pedras antigas, como ali atrás disseram os pedreiros de Casteição. Nem com pedras antigas nem com ruins defuntos. Foram cobertas de saibro aquelas sepulturas cavadas numa fraga, apenas para alisar uma rodeira a circundar o morro, onde há-de passar a procissão da santa.
O arredor é feito de hortas e retalhos de vinhedos, e tapadas derramadas pela encosta, cercadas de altas paredes. Tudo nos diz serem pedras que já viram muita história, queira Deus não passe aqui um dia destes algum romeiro espanhol. À mão direita há um pombal antigo e uma casa arruinada. É o que sobra duma velha quinta, a lembrar a vila romana que um dia já houve aqui. Essa era a vila maior, a origem mais remota do nome do santuário. Agora serve de abrigo ao rebanho que ali vem, nas horas do maior calor.
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