Não tive, na altura, qualquer consciência disso, e havia de levar muitos anos a criá-la. Mas a primeira vez que arrisquei o pé no areal movediço da pós-modernidade foi em meados da década de 60.
Era uma noite medonha de Fevereiro, quando embarquei num velho quadrimotor que lá foi a ribombar a noite inteira, por cima do Atlântico. Ele atracou finalmente na ilha Terceira. E eu fiquei a perceber, depois daquela batalha, como é que aquilo tinha resistido à ponte aérea de Berlim.
A minha secreta finalidade era beber uma coca-cola. E logo na primeira noite fui ao bar americano, roído de curiosidade. Sentei-me a uma mesa onde luzia um frasco vermelho de estearina, dei ao gatilho da lata e ainda hoje tenho o sabor guardado nas papilas.
Ao lado conversavam duas amazonas, com um acento do Mississipi que eu conhecia dos filmes. E uma delas relatava uma viagem que fizera a França. A certa altura visitara um cható, uma coisa tipo estate em maiorzinho, que tinha um rio ao fundo da encosta. Era uma coisa verdadeiramente amazing. Pena é que a tivessem construído tão perto da via férrea, onde um comboio apitava muitas vezes.
Eu, que já saboreara a primeira coca-cola, pedi mais uma lata, antes de arriscar o primeiro alexander. Mas quando o rapaz do bar, um açoriano de bigodes, veio trazê-la à mesa, um texano ao balcão esticou o braço sorrateiro, e pescou lá de dentro uma garrafa de rum. Despejou-a em cima do balcão, e logo um camarada fez faiscar o Zippo. E foi uma agitação, um verdadeiro bródio juvenil, quando um terceiro compincha arrancou da parede um extintor e o esvaziou nas labaredas.
A certa altura reparou um deles na farda nova que eu tinha, de um azul novo e composto. Quis saber se aquilo era um uniforme português. E eu deixei-o encabulado, lembro-me perfeitamente, quando lhe confidenciei, num discurso etilizado, que era do vietcong.
Fiquei ali mais três dias, a encharcar-me em coca-cola, a interiorizar o progresso daquela civilização. Aprendi a apertar parafusos meticulosamente, e afoguei-me na pós-modernidade, sem saber no que me estava a meter. Dia e noite chegavam aviões, cargueiros descomunais, que logo punham em bandeira três quartos dos motores, mal se apanhavam no chão. Depois lá iam atrás do follow-me, as carcaças a tremer e os travões a uivar mugidos de bisonte, até pararem algures, na placa de estacionamento que ocupava o vale inteiro.
Nas estradas passavam banheiras imponentes, a ronronar dezenas de cilindros, arrastando pachorrentas toneladas de ferro. Muitas delas atacadas da ferrugem, por causa do salitre que chegava do mar. A gasolina era ao preço da uva mijona. Mas bem caras eram as tampas dos depósitos, quase todas já roubadas. As mais comuns eram fundos de latas de coca-cola, cortadas à tesoura.
Vim de lá entusiasmado, o papo cheio de coca-cola, e uma grande crença no papel dos parafusos na arquitectura do mundo. Mal eu imaginava no que aquilo iria dar. Andei anos até lavar as tripas daquela grande azia pós-moderna.