segunda-feira, 19 de outubro de 2009

Portugalmente (67)

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Se a vida fossem só as boas vistas, este era o melhor dos mundos. A estradinha é macia, vai seguindo a cumeada na direcção do Douro e parece uma fronteira. À esquerda o vale da Teja e mais além a rudeza das serranias da Lapa, um reino de castanheiros e carvalhos, de matagais bravios e pinhais. À direita o Massueime e as crestadas charnecas da terra quente, pontuadas de vinhedos e olivais, e de inóspitas quebradas a alcançar os confins de Riba-Côa. Já era assim no tempo dos afonsinos, dum lado moram cristãos, doutro são terras de mouros. Vêem-se ao longe os picos da Marofa, da Gata já em Castela, da Malcata lá para o sul. Não se cansam de correr o panorama os olhos do viajante. Pára na encruzilhada dos caminhos, aventura-se a umas fragas mais altas, deleita-se na amplidão do horizonte.
No tocante a lindezas e harmonias, e ao invés do que se vê noutros lugares, os portugueses dão-se por contentes com os favores da natureza. Salvo o monumento antigo, o templo dum outro século ou algum burgo vetusto, basta-lhes para exaltação estética o aprazível recanto na falda duma montanha, o sol-pôr num promontório que afronta o mar oceano, o soberbo panorama onde lhes fica o olhar. A beleza em Portugal não vai além da paisagem. E as suas cores são as que o céu manda, quando não são as do mar. Ao tempo demos feição a este país rural, que aos poucos nos vai morrendo. Mas a história, ou os fios que ela tece, distraiu-nos com miragens e deixou-nos tudo o resto por fazer. Um dia urbanizámo-nos à pressa, para nos tornarmos modernos, mas não criámos qualquer modernidade. E dos nossos fingimentos europeus sobram estendais de fealdade e caos.
A estradinha vai deserta, e a paisagem, que a hora não é propícia. Poucas e magras são as terras de cultivo, cercadas de penedias que os incêndios pertinazes deixaram a descoberto. Mas o viajante já se acostumou a esta solidão. Sabe muito bem que estes caminhos não vêm nos mapas do mundo, e que este Portugal velho não tem lugar na Europa, onde só contam os números e o lucro que deles vem. Mas este pouco é a reprodução miniatural de Portugal inteiro, à procura dele é que veio o viajante. E não contava encontrar a esta hora aqueles três paisanos, que andam atarefados a empilhar umas pedras ali num logradouro. Pára na berma da estrada, vai saber quanto lhe falta até chegar à Meda. A pergunta não passa dum pretexto, o que ele quer é pô-los a falar. Mas os pedreiros levaram-no a sério e alargam-se em comentários. Lá fituram que merece compaixão um sujeito que anda assim longe de casa, a esbracejar no mundo, à torreira deste sol.
Os homens vieram de Casteição, e andam a empilhar as pedras em estrados de madeira, aconchegadas em cercaduras de plástico. Há-de vir um camião de Castaíde a levá-las para Espanha. Os espanhóis forram as casas com elas.
- E donde vêm as pedras?
- Vendem-nas os donos delas! É coisa que não falta por aí!
O homem que assim falou passeia um olhar em volta, a abarcar meia paisagem. O viajante ainda não compreendeu.
- Primeiro vem o mandante, a resolver o negócio com os donos das paredes. Depois chega o pessoal a derrubá-las, e a separar as lascas mais afeitas. É só juntá-las aqui, preparar o carregamento e avisar o patrão. Os espanhóis levam quantas houver.
Ao viajante custa-lhe a acreditar no que está a ouvir. Com permissão dos pedreiros, para não parecer indiscreto, embrenha-se mato adentro e vai ver o campo de batalha. Até onde a vista alcança não há paredes em pé, e o viajante fica embasbacado. Habituou-se a pensar que estes muros desenhavam na paisagem a alma do povo que os ergueu durante séculos. Fazem parte duma herança colectiva. E nunca lhe passou pela cabeça poder alguém chamar-lhes coisa sua e trocá-los por dinheiro. Ao viajante caberá compreender a ganância ou a miséria, mas não entende esta insânia. E não haver um ministro, um juiz, um delegado, um polícia, um deputado, um edil, um pároco, um regedor que intervenha no desmando, só pode significar que Portugal já morreu.
- E como é que apareceu um tal negócio?
- Há muitos anos, sei lá! Veio da raia do Côa, espalhou-se por aí fora, já vai nos montes da Lapa...
- E as paredes dos baldios?
- Mais depressa vão abaixo!
- E você, que pensa deste negócio?
- Cá por mim, do ponto em que me paguem o trabalho...
Abatido com a funesta descoberta, o viajante afasta-se dali, que o abandonaram as palavras.
(...)