quinta-feira, 12 de dezembro de 2024

As Aves 4-3

Por essa razão íamos nós perdendo a vez de olhar Torquemada de perto. Passava-nos o burgo ali à esquerda, amalhado ao pé duma colina vasta,  rebanho assustado, mal nos davam os olhos nele. De ruim ninho sai o bom passarinho, a ser verdade o que o povo diz. Mas aqui devemos nós lembrar a inversa, que é já se terem visto passarões levantar ruto de ninhos mais benignos, se será este o caso. Sabe Gaspar, por sua nem sempre agradável experiência, que os filhos serão muito do que forem as terras-mães donde saíram. O que não sabe é se as terras acabam também por ser alguma coisa do que os seus filhos foram. Nem ele nem nós. A verdade é que tudo neste povoado tem a cor das cinzas que as grandes fogueiras sempre deixam, quando esfriam. Com justiça ou sem ela, e enquanto aos homens não falecer a memória de vez, de nada valerá a Torquemada alegar-se inocente, disfarçar-se na raiz deste monte e dizer que nunca lhe cheirou a carne queimada, ou que não ouviu o clamor das vítimas do potro e da polé. Os homens de memória passarão aqui. E, reparando na tabuleta a indicar o topónimo, alguns hão-de ver nela, erguido e vigilante, o facho do fanatismo a incendiar uma pira, acaso este arrepio foi a memória antiga duma língua de fogo revolto, a lamber um ventre mais trémulo.

E ainda bem que chegámos a Burgos, onde o que o ventre nos está pedindo é outro e mais consolador abalo, o reconforto do pequeno-almoço. Gaspar nunca andou por aqui, não conhece a cidade, a bem dizer quase todo o vasto mundo lhe é desconhecido, e o que mais calcorreou não vem nos mapas, muito lhe apraz esta paragem à beira das verduras do rio que a atravessa. A fronteira que passaram a salto já está longe. E, não sendo esta Espanha lugar que se recomende a clandestinos, mormente a estes que trazem às costas a sua conta de marcadas heresias, não estranhemos nós que a distância a que já estão lhes vá restituindo à-vontade e leveza de gestos, mesmo se Torquemada ficou ali atrás de atalaia. Gaspar viu as torres da catedral a investirem contra o céu cinzento, ousou pedir um quarto de hora e fazer de turista apressado, João só lembrou as premências do tempo. (Cont.)

quinta-feira, 5 de dezembro de 2024

As Aves 4-2

Há uns ameaços de chuva na paisagem, este céu está fusco e pardacento, dava jeito aqui um sol que viesse forçar um sorriso a estes viajantes, tão sorumbáticos se mostram, basta às vezes um pequeno nada para que o mundo deixe de ser assim a preto e branco. O trânsito é escasso a esta hora matutina, e o andamento o conveniente aos mesquinhos cavalos que nos puxam, assim não venha a chuva exigir-nos cuidados acrescidos e perdas de rendimento na empreitada, ainda bem que não estamos nos meses de verão, há muito já se vai dizendo que esta é a estrada da morte dos portugueses. Passam por aqui aos milhares, e não há fiferença entre eles e as aves de arribação, que umas e outras se deslocam por idêntica bússola, encontrar um recanto assinalado na dobra duma paisagem, escolher nele uma pedra para recostar a cabeça, plantar aí as raízes da alma. É este o seu carreiro de formigas quando chega o verão, em filas que vão até ao horizonte, queixam-se as viaturas por serem às vezes velhas em demasia, e rangem ao excessivo peso, e aquecem demais ao masculino sol ibérico, e mais se queixam as crianças da sede e da falta de espaço, e do ar azedo que ferve, saturado de humores, as mulheres iam agora lamentar-se do destino que tanto demora a chegar mas falece-lhes a oportunidade, sempre a última na ordem das prioridades, que agora é a vez de se queixar este homem condutor, do suor e do cansaço, há oitocentos quilómetros que não pára, e por isso lhe descaíram as pálpebras, ou ele as deixou velar, o carro foi perdendo a direcção adequada, tão lentamente que ninguém deu por isso, tão imperceptivelmente que nenhum protesto se ouviu, entrou no desnível da berma e a roda sobrecarregada não conseguiu voltar à via, não era duma trabalheira assim que estavam precisadas estas ambulâncias da guarda civil, a galopar aos gritos na paisagem.

Mas a prometida chuva não passou dum aceno, e este não é o tempo das vacanças e seus afogadilhos. A estrada é um tapete que à nossa frente se abre, riscando ao meio a planura, e por ela deixa Gaspar discorrer a vista melancólica, esta meseta castelhana é uma terra vencida, geologicamente exausta e exaurida. O tempo suspendeu um dia as convulsões de milhões de anos que nala se adivinham e deixou este mar chão domesticado, onde a mesma ondulação estática se reproduz indefinidamente, e onde nada nos surpreende o olhar. Ficou esta paisagem torturada, que estranhas elevações interrompem a espaços, é um cenário de papel donde as próprias árvores desertaram. A custo se arrancam do chão os povoados que raramente surgem, e tudo tem a mesma cor pardacenta da terra, os telhados, os muros das casas, as janelas.(Cont.)

segunda-feira, 2 de dezembro de 2024

As Aves 4-1

João bate á porta do quarto num gesto impaciente, é tempo de partir e Gaspar está ferrado ainda no sono da primeira manhã. Será este o melhor remedeio quando a noite assim se tresmalhou, consumida em ânsias e suores, mas isso não o sabe João, nem são contas do seu rosário. O que ele temé que atravessar a Espanha com estes dois viajantes e pô-los a recato, e ainda falta Burgos, e Miranda que vem tão longe, e mais ainda Vitória, e Tolosa, e Irun lá para o fim da tarde, que estes dias são pequenos, bem fizémos nós em esticar assim a etapa de ontem. O carro minúsculo respondeu de imediato ao aceno da chave, soube-lhe bem o repouso e não se queixa de pesadelos nocturnos, será porque nunca foi à guerra.

No meio da geral modorra matutina Gaspar vai triste, à medida que abandonam a cidade. Não tem aqui nada de seu e no entanto olha as ruas e as fachadas, olha este caminhante e aquela árvore como quem se despede. E do fundo da memória sai-lhe uma lembrança antiga, de quando ia apanhar a camioneta para o seminário, há quanto tempo isso vai e a emoção de hoje é a mesma, passamos a vida a repetir-nos. A velha Dodge amarela, antiga como a primeira das irmãs que saiu das forjas de Detroit, o inchado nariz a roncar estrondos jurássicos e o tejadilho a abarrotar de fardos e bagagens, lá ia bordejando prados e colinas pela estrada do Côa, e a Gaspar ficavam-lhe os olhos presos nas paredes das hortas, nas giestas floridas se era Abril, nos castanheiros nus, ficava-lhe uma dor agarrada às imagens da mãe girando na cozinha, às picardias dos irmãos, às cavalgadas dos cães que lhe vinham sempre à mão, quem não sabe o que isto é poderá ver, por estas lágrimas, quanto custa perder a liberdade. E agora parece que finalmente o rodar do tempo lhe vai abrindo os olhos para a realidade que está vivendo, lhe vai despertando a consciência para as rupturas a que deixou a alma exposta, e que apenas aguardam o momento de começar a sangrar. Sente o peso de quanto deixou para trás, bom ou mau é o que lhe fazia a rotineira e sossegada vida. São isto ingenuidades a que teremos que atender, o mundo seria outro se todos tivéssemos têmpera de heróis, o que será ele isso, ainda não é desta vez que lançaremos nós a primeira pedra. (Cont.)

terça-feira, 19 de novembro de 2024

As Aves 3-10

Vera razão, porém, quem a tinha eram os aviadores. Por terem feito os doutores o que sabiam e puderam fazer, não foi preciso despachar este para a metrópole nessa mesma noite, no avião da TAP, conforme estava decidido. Eram escassos os aviadores, no meio da geral penúria de armas e munições, da míngua geral de viaturas e aeronaves, da falta geral de materiais e de soldados, eram demasiado escassos os aviadores, jovens, esforçados, loucos, para calcorrear as amplidões da pátria e manter audívelna paisagem o estrondear do império, para distribuir os bate-estradas da tropa em pistas de terra que se dobravam a meio quando esbarravam na orla da mata, em pistas de terra que subiam tranquilas o declive da encosta se calhava tropeçarem numa colina, eram demasiado escassos os aviadores para arrancar à loucura geral os soldados que as emboscadas ainda não tinham dizimado, e que davam tiros nos pés que as minas ainda não tinham decepado, a ver se alcançavam lugar numa passarola pré-histórica onde não cabia a maca e o enfermeiro com o frasco de soro a pender-lhe da mão, mas que podia tirá-los dali se aterrasse sempre do mesmo lado e descolasse na direcção contrária, indiferente ao vento, indiferente à carga, para não rasgar a barriga de lona nas copas altas da floresta, que já crescia ali muitos séculos antes de haver estas manobras aéreas. Eram demasiado escassos os aviadores, e por isso há estas fardas importantes a passear no átrio das urgências, à espera duma ambulância que aí vem com um piloto acidentado, ainda por cima à hora do bridge no terraço, ainda por cima à hora do gin tónico e da brisa que sobe, fresca, da baía, e um tal zelo far-nos-ia pensar que vai chegar aí a rainha Ginga de charola, se ainda estivesse viva e se viesse curar duma crise de paludismo.

A TAP não espera, e por serem os aviadores demasiado escassos, é preciso decidir logo em cima da primeira observação médica. Razão, porém, quem a tinha eram os aviadores do norte. Os doutores lá puseram Gaspar a dormir um mês inteiro, e só depoiso manraram para Lisboa por não haver ali mais a fazer-lhe, não há nestes, como noutros casos, melhor do que deixar a vida seguir o seu natural curso, e vem a jeito lembrar a parábola do regatinho que da serra vai baixando, quem poderá impedi-lo de chegar ao mar. Credores seriam eles, de redobrada mesura e devoção, se a este pudessem os doutores ter juntado outro milagre, que era o de livrar Gaspar dos pesadelos fantásticos, febris, escuros como fundos de poços, que vieram um dia e ainda hoje assim voltam, como este espelho está mostrando, e o deixam aterrado sempre, afogado no lago negro onde o vemos a esbracejar. (Cont.)

quarta-feira, 13 de novembro de 2024

As Aves 3-9

Esperaram por ele em sobressalto os companheiros, que ao longe o tinham visto desaparecer atrás da colina redonda. Sabiam ao que andava, o suficiente para lhe entenderem as manobras, deram conta de como o zumbir do motor se evaporara da infinita paisagem, e aguardaram que voltasse a aparecer do outro lado do monte. Mas ele já não veio palo seu próprio pé, e ao fim de várias horas de busca tropeçaram nele a esgrimir contra o capim altíssimo, enterrado até às partes nas lodagens dum charco onde as pacaças tomavam banhos de frescura, a cabeça disforme alagada no sangue que lhe espirrava das pálpebras em chaga, cego e alucinado, em busca dum caminho improvável.

Velaram-no toda a tarde,num estranho silêncio dolorido, atentos ao murmúrio que às vezes o agitava, um de cada vez metendo-lhe na mão as mãos que ele não desistia de agarrar, o que será que segurava. O que viam por fora não lhes deixava campo de esperança, mal sabiam eles que Gaspar não tinha partido sequer um dedo mínimo, das convulsões que lhe tomavam o peito saíam apenas vómitos de sangue, mas os próprios olhos estavam intactos, outro era o lugar das mais fundas lesões, e esse não estava à mostra. Milagre era já ele estar ali estendido no chão da viatura, ninguém sai com vida dos destroços que assim encontraram espalhados no capim, à beira do paul.

Porém este saiu, e já recuperou a razão à entrada do hospital, estendido na maca baixa, e já ouve este padre capelão a lembrar-lhe que também Deus o tem por seu filho, e que deve estar pronto a acatar o seu intangível desígnio, somos só verdes vimes que um vento verga, feita seja a vossa vontade, a minha não. Gaspar vê claramente o significado desta aparição que o fragiliza, que assim franqueia brechas na sua íntima segurança, depois da euforia animal de se descobrir vivo. Inunda-o este amargo sabor a fraude, sente-se violado por dentro, vocifera contra generais e guerras e pátrias, a sua e as restantes, mais que nunca se aferra às palavras que corriam entre os aviadores, lá no norte, se chegarmos vivos ao hospital os doutores não nos deixam morrer, na verdade o que ali lhe valeu foi perder outra vez o sentido, foi ter baixado o pano, de novo congelado o tino e a razão. (Cont.)

sábado, 2 de novembro de 2024

As Aves 3-8

E também não chegou a ver, tinha passado um ano, o contorno disforme da sua própria fachada, quando uma equipa de enfermeiros o meteu numa ambulância que buzinou desesperada pelas ruas de Luanda, ia caindo a noite, até o despejar na urgência do hospital militar. Gaspar chegava num avião que vinha do norte, estendido numa maca rasteira, a cabeça embrulhada em ligaduras que eram uma pasta de sangue a pingar-lhe dos olhos retalhados e inúteis, e o corpo inerte, forçado a hibernar por doses de morfina.

Bastava uma chuvada para trazer a fome, num destacamento que partilhava com umas dezenas de companheiros perdidos no sertão, ao lado duma sanzala miserável. Uma pista de terra que as chuvas alagavam e onde ninguém arriscava aterrar, alguns barracões de madeira roídos da formiga, o paiol das munições e uma cozinha onde os ratos faziam criação, no mastro risível do terreiro içavam às vezes a bandeira da soberania. Comeram os mangos bravos da velha picada abandonada, perderam-se em bandos no capim, de arma aperrada, sem avistarem um só dos burros do mato que deambulavam na paisagem, sem poderem despejar-lhe no bucho um carregador inteiro, a fome continuava e um dia Gaspar montou num velho avião e foi à caça.

O bicho estava no visor, partido em quatro pelo retículo, o avião ganhava altura e despenhava-se sobre ele num frenesi desesperado, alongando o focinho raivoso enquanto semeava estrondos na paisagem. As armas espirravam frenéticas e ninguém podia perceber onde iam parar as putas das balas, o bicho estava no visor e continuava aos saltos provocantes no capim, se prolongarmos aqui a picada um segundo talvez nos não escape, um só segundo e resgatamos o pundonor, mais um segundo e Gaspar sente o avião a afundar-se no capim, sente-o a pentear os arbustos com o rebordo grosso das asas, sente-o a rasgar a barriga no mato rasteiro, o bicho fugiu do visor e parou de saltar quando um trovão lhe desabou no espinhaço e o matou.

Gaspar viu também a morte que ali estava. Puxou o avião para o ar antes da viseira partida lhe ter rasgado os olhos, antes de o capacete se estilhaçar contra os ferros da carlinga, viu a morte e execrou-a num clarão de raiva, e logo se deixou inundar por uma indescritível renúncia, quase mística, quase doce, aquela morte era distinta e inelutável. Caiu sobre ele um manto escuro de aniquilamento, perdeu a consciência por força da violenta pancada na cabeça e já não assistiu à derrocada restante, nunca chegará a perceber como saiu vivo daquilo. (Cont.)

quinta-feira, 31 de outubro de 2024

As Aves 3-7

Foi gente igualzinha a esta que uma bela manhã do Congo acordou trinchada à catanada, como os porcos antigos das aldeias, pelo desespero de bandos de africanos, fartos das mentiras do branco, fartos das vilanias do branco, fartos da opressão do branco. Fingindo-se virgens ofendidas, os governantes de Lisboa puseram-se a gritar que estava em perigo o terreiro sagrado da desmoronada sé de Salvador do Congo, enquanto brancos e pretos se afogavam num abismo de pânico e de sangue, a que nenhum irá sobreviver. Cegos e surdos ao correr do mundo, os governantes de Lisboa puseram-se a embarcar à pressa batalhões para Angola, a ver se restauravam a soberania.

Assim caída no sertão, entre forças que mal conhece, a tropa acabará dilacerada entre um vento de ódio que cega, e o medo que entorpece. Ora a presença dum inimigo é o único antídoto contra o medo, toda a gente sabe isso. Mas aqui, em lugar de inimigo, tudo quanto existe é o areal movediço dum imenso embuste, onde qualquer um vai matar para não morrer. E, entre este que é soldado e aquele que se tornou num assassino, vai um passo mal medido. Despejaram-se bombas de napalm sobre multidões de negros atraídos aos largos das igrejas, e os bandos que vinham atacar os povoados, com zagaias e trabucos feitos à mão, eram recebidos à metralhadora, eram dizimados à granada. E os prisioneiros, quando levados ao interrogatório, acabavam assassinados à facada, com o sabre-baioneta a enterrar-se lentamente na carne, à procura de caminho para um órgão vital.

Desde cedo se tornou a tropa um motivo de desprezo dos brancos, culpada de todos os males. E os políticos dementes de Lisboa, que sacrificavam a interesses velados a vida de milhões de criaturas, cedo demais começaram a cantar a sua vitória, o que lhes ficou nas mãos não foi uma pátria restaurada, mas um cadáver a apodrecer. O Congo inteiro transformou-se em terra de ninguém, restaram as picadas que o capim havia de engolir, restaram os destroços das casas que as chuvas foram arrastando para o rio, restou este grito sufocado das plantações abandonadas, que o mato depressa reclamou. Erguidos na paisagem, cercados de trincheiras e toscas torres de vigia, ficaram apenas os barracões de madeira das guarnições de quadrícula, na esperança de que se mantivessem de pé enquanto a loucura durasse.

Gaspar não teve que viver esses tempos originais. Nas vazias amplidões do Congo,a única ez que Gaspar teve contactos directos com oinimigo naquela guerra foi através duma fotografia. Isto logo à chegada, andava ela por ali entre papéis, abandonada no tampo duma secretária onde se acumulavam planos e ordens de missão. A cara deformada e sem feições dum negro que caíra nas mãos da tropa mostrava um olhar que já não parecia de gente, por certo era o retrato dum cadáver, Gaspar nunca chegou a sabê-lo. (Cont.)

domingo, 20 de outubro de 2024

As Aves 3-6

O terror insano que alastrara no Congo, nos primeiros anos da guerra, foi maré tempestuosa que a exaustão do tempo apaziguara. As primeiras companhias de soldados saíam dos porões dos navios ao som do Angola é nossa, e eram recebidas por multidões de colonos tomados por um misto de pânico e delírio, acreditando uns que a vingança seria arrasadora e terminal, e outros que a pacificação estava ao alcance duns breves tiros de morteiro. De resto, a maioria da tropa era da mesma estirpe do colono africanista. Vinha das mesmas aldeias onde nada mudara há séculos, a abarrotar de gente que não tinha dois palmos de terra onde plantar uma couve e cair morta, das mesmas aldeias onde a vida era rudíssima, e onde o único futuro era a bem-aventurança mítica dos cartazes de propaganda da Lição de Salazar, a abarrotar de gente que já não sabia fazer outra coisa senão tirar o chapéu à casta de figurões que a bem da nação tinha o país por conta, para suprir as faltas do povo sempre hão-de bastar os carregamentos da caritas da América, que isto é gente de boa e desenfastiada boca, do queijo de plástico e do leite em pó das fábricas da América, distribuídos por um abade qualquer, louvado seja Deus que tão equilibrado e aprazível fez o mundo. Era gente que andara a fugir da miséria a vida toda, por onde mundo houvesse, pelos subúrbios da Europa ultimamente, por Índias e Brasis desde há séculos, pelas Áfricas quando lho permitiram, um dia desembarcou numa baía dos trópicos esta gente a quem disseram, tudo quanto a vista alcança é Portugal.

Ninguém entende bem como isso possa ser. Mas depressa todos se dão conta de que basta a cor da pele para definir uma condição no mundo, afinal sempre valeram a pena as canseiras do Vasco da Gama. Passámos a vida toda numa servidão insuperável, a desbarretar-nos à passagem de condes e doutores, e finalmente aqui nos deparamos com criaturas mais vilipendiadas do que nós, ainda mais oprimidas do que nós, muito mais desprezadas do que nós. Esquecer depressa o sofrimento antigo, enterrar fundo a humilhação dura do passado, é exercício vital se queremos assumir um papel no mundo. Pomos por isso uns óculos escuros no nariz e aprendemos a beber whisky com gelo, armados duma pasta cheia de ar e vento mas carregada de significados, enquanto vamos estalando na calça um cavalo marinho que nos há-de compor a figura e realçar o ar de mando. Roubamos na compra, na venda enganamos, são quentes as pretas e de fadário submisso, o administrador é mais que todos cúmplice e venal, o resto, que é muito, não é nada que um bom sipaio não faça com gosto, é só dar-lhe mão livre. E eis que do mais mesquinho súbdito tirámos um patrão, não foi para outra coisa que os impérios se fizeram. (Cont.)

sábado, 19 de outubro de 2024

As Aves 3-5

Mas a cara gelada deste espelho é que não tinha só o frio para lhe devolver. Diz-se que, em sonhando, se estende a lógica dos sonhos, mesmo de pesadelos não passando. Não é assim com Gaspar, ao menos neste caso, que, entre visões e espectros, o que está vendo ao espelho é a sua própria imagem devolvida. O retrato é quase de corpo inteiro e revela-nos um ventre transparente, onde o celofane tomou o lugar da pele opaca, como nos manequins das aulas de anatomia. Vêem-se claras as circunvoluçõesdas tripas ensanguentadas, o volume dos órgãos íntimos, estranho é não lhe causar isto repugnância, e se não for por se tratar dum sonho, será porque deste interior todos nós somos feitos. A cabeça tem de lado uma parede refeita, diremos restaurada, uma das têmporas é de baquelite castanha, entalhada no crânio. E assenta sobre um pescoço desproporcionado, exageradamente fino e alongado, a prolongar uma coluna também reconstruída, descarnada a espaços, as vértebras cervicais são polidas e brilhantes, apetece aflorar-lhes um dedo, parecem talhadas em chifre cinzento.

Gaspar deixa as mãos descer ao longo do corpo e não encontra as coxas, não encontra as pernas, se quiser mover-se não consegue mais do que arrastar-se sobre os braços, a si próprio faz lembrar a cena dum filme em que os soldados tinham vindo da guerra e estavam pendurados num tecto de hospital, suspensos duma rede como vasos de flores, como presuntos na cura, mergulhados em penumbra e silêncio.

A respiração ofegante e descompassada vai traindo a aflição que se apodera dele, e agora falamos deste real Gaspar que dorme, sai-lhe às vezes do peito um grito abafado, um roncor se diria, benesse caridosa era acordá-lo, já noutras ocasiões em que isto mesmo aconteceu o teríamos feito, assim pudéssemos nós usurpar poder e competências, ademais nos faltando, para tão bicudos casos, um patrono encartado de quem lançar mão, ele há um para a fome, outro para a peste, algum para a guerra, se não todos num só, aqui não édela que se trata, porém antes dos estragos que deixou.

São coisa já antiga, estas assombrações que assim chegam sem marcar visita, vêm do tempo em que Gaspar andou pelos sertões de Angola, chamado a defender a pátria. Havia nas vazias amplidões do Congo alguma coisa de fascinante e hipnótico, com elefantes solitários a passear o tédio por chanas sem limite, com vastos bandos de pernaltas brancas que lavavam todo o dia os pés nos charcos, e anafados crocodilos de pedra tomando eternamente o sol nas margens das lagoas. Um homem sentia-se minúsculo, esmagado por tamanha grandeza. E se era da vastidão sem fim dos horizontes que o feitiço provinha, se da aterradora força das florestas, ou das serras majestosas donderios se despenhavam, Gaspar não chegou a sabê-lo ao certo. A vida decorria num limbo de inconsciência e voluntarismo perigoso, como num jogo de roleta russa, e as energias da juventude aprisionada assim nos limites do arame farpado fervilhavam em circuito fechado, sem objectivos nem sentido claro. Os mais velhos refugiavam-se na família que traziam atrás, ancorados no cais de miúdos e privados interesses, alguns almejavam cruzes de guerra para enfeitar a carreira. Os outros faziam por sobreviver, morriam às vezes em acidentes vãos e desatinados, poucos se davam ao incómodo de formular perguntas a que ninguém queria responder. O mais importante era queimar o tempo, era queimar as forças, era queimar infindáveis horas de voo numa ilusão de utilidade, enquanto os dias tombavam um a um, como folhas de outono, riscados num calendário. (Cont.)

terça-feira, 15 de outubro de 2024

As Aves 3-4

Invenção não é, porém, este bando de presos comuns que agora mesmo escancarou as grades da ala norte da prisão,blina e vem abrindo cela a cela a estes encarcerados. Têm nas unhas as chaves do armeiro e deixaram já livre o caminho até ao pátio interior, ecoam por estes muros difusos gritos das famílias que lá fora se anunciaram, enquanto vão retumbando os estampidos das armas automáticas, não há janelas para ver o que acontece mas cada um de nós o adivinha, e aos poucos nos vamos encontrando no corredor, ainda desconfiados deste livramento que por tão ínvios caminhos nos chega, ainda suspeitosos, perguntando a quem no-las oferece, de que nos servem as chaves que armas devem cerrar e não abrir, quando um velho, de autorizado aspecto, se dá conta da cilada que ali está sendo urdida, se nos apanham lá fora, pior de armas na mão, somos todos ceifados, recolher à cela, camaradas, recolher à cela.

Quem se vai recolher, mas não à cela, é Gaspar, mais a restante embaixada. Assim sem darmos conta chegámos a Palência, onde tínhamos parada prometida, as horas são já mortas, maneira de dizer que a cidade está dormindo. Cruzou a pequena viatura por essas ruas, a esta hora livres de constrangimentos de trânsito, como se buscasse pelo faro esta praceta onde nos apeámos. Ninguém disse palavra, muito natural em se tratando de escolher pousada em terra estranha, concluamos não ser hoje a primeira vez que este carro aqui vem parar, ali está o hostal chocolate esperando por nós há uma vida, um pequeno letreiro verde a piscar na algidez da neblina.

Um recepcionista ensonado entregou as chaves aos hóspedes que em silêncio vão já subindo a escada circular, tudo decorre sem hesitações, como se tudo estivesse previsto, e Gaspar vai correndo os dedos no macio corrimão enquanto sobe ao primeiro andar, nunca a palavra se ajustou assim fisicamente ao gesto, como esta mão aflorando a madeira, se a causa não for o peso da minúscula mala, sê-lo-á o cansaço da noite, que é já longa. Cada um fechou a porta atrás de si, e terá sido o peso das pálpebras a impedir-nos de atentar no jovem par que já desapareceu, se afinal é um casal a sério, se dormirão juntos os dois, esta era a oportunidade de o saber, que assim desperdiçámos.

Gaspar relanceou a vista ao ambiente, como que faz um reconhecimento, notou o vasto espelho sobre o toucador a devolver-lhe uma sugestão nua de frio, ninguém estranhará as prevenções dos olhos que assim buscam na paisagem adversa as cores preferidas, e o olfacto os aromas, afinal é este o refúgio em que vamos baixar a guarda e nos renderemos ao descanso. Não são estes por demais singulares, nem aromas nem cores, o cansaço fez o resto, ao enrolar-se nos lençóis parecia que Gaspar se enrolava no sono. E ainda bem, porque Gaspar não deseja pensar. Viu partir do cais esta nau em que tomou lugar, vem assitindo do convés ao soltar lento das amarras, abre-se-lhe em frente um grande mar que desconhece, e não pode adivinhar os caprichos da rota que o espera. Foi-lhe dito que a ausência será longa e imprevisível o evoluir das coisas, bem poderá contar com dez anos lá fora, melhor será refazer a vida de raiz nalgum porto de abrigo, o mundo é grande.

quinta-feira, 3 de outubro de 2024

As Aves 3-3

Assim perderá ele o espectáculo desta récua de prisioneiros que chegou à invicta cidade do Porto, algum deles viajou acorrentado aos ferros da aeronave, para que nem um grão se perdesse da requerida segurança, e durante dois dias nenhum deles comerá pão de vida, e antes disso, horas a fio, vão ficar aqui na aerogare, algemados de mãos e esperando transporte seguro, viremos a saber para onde, aqui serão alvo da caçoada pública e receberão nas caras roxas de frio as chufas e motejos da populaça em fúria, ela sim esquentada ao rubro pela retórica santificada de algum distinto clero, não faltam por aí activíssimas sotainas rasas, arciprestes e cónegos, fossem ele os tempos de el-rei D. Manuel, e estando nós no largo de S. Domingos em Lisboa, tudo acabaria no queimadoiro, ateêmo-lo já que o Santo Ofício está aí não tarda, com dobrada razão se diria, aqui também, remédio santo.

E perderá também as emoções da fuzilaria que há-de haver, não demora, no descampado fronteiro a esta prisão, onde cento e vinte militares encarcerados dividem espaços com os presos comuns. Numa tarde hão-de chegar as famílias, não sabemos se em visita ou manifestação, quiçá por ambas, diz-se que em breve todos estes virão a ser levados a uma prisão, nas serras da Beira, oxalá venham a aproveitar a oportunidade que assim lhes é ofertada de ver o mundo a partir destas altas cotas, numa excelente perspectiva global com que todos terão muito a aprender e alguma coisa a corrigir, o pior é o gelo, o pior é o isolamento, o pior é o que se vai ouvindo e se teme, as falanges de um general de olho de vidro que foi, no tempo próprio, visitar o cerco de Estalingrado e por lá afinou estratégias, operam a partir de Espanha e têm já prevista a emboscada no caminho, tão fácil de fazer naquelas serranias, é isso que nós queremos evitar.

Já saiu a cavalo uma patrulha a conter esta multidão de clamadores, sobretudo aqui divisamos crianças e mulheres gritando, se os homens estão lá dentro, e o quê só o coração delas o dita, um cavalo espantou-se, a história da cavalaria está cheia destes eqídeos poltrões, se não fracos dos quartos, porém nem sempre um graduado, de sabre em riste, desaba assim de costados no chão, como agora pudemos ver. Já relincham cavalos de crinas ao vento, de puro contentamento por se verem assim livres de tão descomedida carga, já um pelotão de guardas infantes atravessa o portão e assenta joelhos em terra, a lavar esta afronta, já se ouvem pelo ar detonações das armas, se não também estridentes farpões e setas várias que pelo ar espesso voam. Dois mortos não se erguerão mais deste chão, e uma criança levará para casa uma bala no corpo, como poderia ela turvar a água a esta béstia, o mais seguro é que, não sendo sua a culpa, tenha sido do pai, quites ficamos, para tanto se inventaram as fábulas, (Cont.)

sábado, 28 de setembro de 2024

As Aves 3-2

Voltam não voltam, este é o momento que aos veros salteadores de todas as histórias mais arranjo faz, descem ao meio da praça e põem-se a gritar ao mundo inteiro, agarra que é ladrão. Havia assaltos a partidos, defenestrações de trastes e cartazes, exigências de interdição dos comunistas. Rosnavam-se punições e vindictas, como já noutro local foi dito, e era disso que afinal se tratava vindo a apurar-se a boa verdade, era de vingar a agitação e o susto que o último ano e meio provocara, era de punir esta ousadia a um povo de tão cordatos hábitos, e o alvoroço que nos trouxe nas vidas, mais do que o prejuízo, finalmente já não temos que fingir, que a despeito dos sinais em contrário sempre fomos democratas, que sempre estivemos ao lado do povo e não a cavalo nele, e que, com algumas faenas a preceito, também nós estivemos com a malfadada revolução.

Gaspar, que ainda o não era, como estamos lembrados, ouviu mais do que disse nesse encontro, a ele cabia a última palavra, colheu opiniões. Havia turbas de prisioneiros encarcerados, faltava saber que sorte os esperava, e com que normas viriam a ser julgadas tantas acusações, chegando a sê-lo, a memória de todos, antiga e mais recente, estava cheia de casos pouco recomendáveis. Gaspar teve medo e foi viver para Benfica, num largo poeirento paravam autocarros, do décimo andar via-se por inteiro o telhado velho duma capela antiga, entre duas palmeiras.

Contra ordens recebidas, que desaconselhavam idas à rua e proibiam todos os contactos, telefonou à mulher, às vezes se encontraram, noites houve emque dormiram juntos, alguém virá larçar-lhes a primeira pedra. Na insegurança em que ela se achava, pensava Gaspar, não podia deixá-la ao desamparo, no desconhecimento de tudo, havia que garantir-lhe meios de vida, o salário em breve seria suprimido.

Passaram alguns dias e estava demitido, exonerado, a palavra dirá que estava liberto de pesos quando afinal os ganhou novos, apeado estaria se houvesse aqui montada e cavaleiro, ou deposto sendo príncipe reinante, mas Gaspar não passa dum plebeu, abatido por deserção foi o seu simples caso, e palavras há de peso esmagador, mesmo sendo o que são, meras metáforas. E porque em dois meses lhe não chegaram notícias que o tranquilizassem, e andavam ainda frescas as lembranças trágicas do Chile, nunca se apresentou à porta da prisão e decidiu partir, chegada que foi a manhã de Fevereiro que já presenciámos. (Cont.)

terça-feira, 17 de setembro de 2024

As Aves 3-1

Não há, porém, sol que se levante sem primeiro se pôr, e isso é justamente o que acaba de suceder com esta fraca luz de finais de Novembro. A noite vai-se apoderando da paisagem, vai dissolvendo ruas e pracetas, enquanto sobe lenta as ladeiras do bairro. Esperando por isso andou Gaspar a tarde inteira, doem-lhe os pés cansados de pisar o tempo, doi-lhe na alma este abandono, e no estômago alguma fome. Volta a bater à porta que já conhecemos, prolonga uma insistência vã, e aventura-se por fim a lançar mão dum telefone. Um amigo virá apanhá-lo no bairro, à esquina da fábrica velha, e não há qualquer mistério nestes códigos, o caso é que só quem ali viveu antes de o quarteirão antigo ser demolido e urbanizado, só quem saboreou os almoços à sombra do telheiro,nas tardes de domingo, os poderá entender. Gaspar é assaltado por recordações que apenas o tornam mais vulnerável, seria agora caso para lembrar aqui velhas fraternidades, vindas do tempo do colégio, quando a rebeldia ensaiava os primeiros passos e o entendimento do mundo abria lentamente o seu caminho, antes de a vida ter começado a despachar cada um para seu lado, este para a guerra de Angola, aquele para Coimbra, algum para onde foi possível, e isso é o que faríamos se não tivessem surgido ali à esquina os faróis amarelos de que estávamos à espera.

Nessa noite se juntou o grupo e se fez a análise da situação, era assim que se dizia, havia quem tivesse informações do partido e nãose duvidava de que eram as melhores, decidiu-se que o mais prudente era ficar algum tempo a ver em que paravam as modas. Anda no ar uma grandíssima fuzilaria contra os conjurados traidores, com pedidos de denúncia e captura, veremos em breve que nem só de exercícios verbais se trata, este alarido de botas da tropa na escada de madeira é duma força de milicianos que às três da manhã sobem ao terceiro andar onde Gaspar morou, range alguma tábua carcomida e há alvoroço na vizinhança, e levam nas mãos verdeiras armas de guerra enquanto passam revista a esta sala e àquele quarto, vê debaixo da cama e abre-me esse armário, vai tu à copa e à cozinha, e ao sair, de armas em bandoleira, nenhum deles soprou no cano da espingarda porque não chegou a usá-la, os dois garotos estremunhados nas camitas não lhes pareceram inimigo à altura. Mas eles voltarão. (Cont.)

segunda-feira, 26 de agosto de 2024

As Aves 2-23

Deus, porém, é quem escolhe, não nos cause admiração que reserve para si a melhor parte. E nem sempre avisa com  antecedência, como neste caso em que João teve que sair da estrada para satisfazer necessidades do corpo. Este parador é uma ilha de luz providencial na escura noite castelhana, se não é já leonesa, estão ali as casas brancas rodeadas de holofotes, dois carros dormem alheados da friagem nocturna, acaso desistiram da travessia deste deserto. Já os outros abrem cá fora o peito à frescura da noite, quando Gaspar emerge, aturdido, e pergunta onde estão. Um grupo de espanhóis ceia tardia e ruidosamente, ficamos sem saber se há motivos para a casual celebração ou se não é antes de inveterado costume que se trata, olha uma pessoa estes cristão e fica na dúvida se tanta exuberância é assomo doentio de grandeza, como já se tem dito, ou natural manifestação de sanidade de espírito, qualquer paisano é um duque d'alba em pelota, a quem o sol pede licença para se levantar. Há momentos em que um homem tem a alma mais quebradiça, e este será o caso, mas Gaspar sente perante estes castelhanos uma tal estranheza e uma fragilidade que nehum outro estrangeiro lhe faz sentir, parece olharem para nós como se não existíssemos. Afinal tivemos uns e outros fadário de andarilhos por esse incógnito mundo, sofremos uns e outros a sotaina e o queimadoiro até ao enjoo, um pouco maise meros inquisidores seríamos nós todos, se o não seremos já, de fé puríssima e purificada, suportámos ambos déspotas e tiranetes mais que a conta, com estamos lembrados. Vivemos aqui paredes meias há uma vida inteira, parecia isto uma casa de família e não o é, acaso o ponto estará em saber como vivemos essa vida, ou como nos foi contado o que em séculos temos feito uns aos outros, se não será já tempo de esquecermos tudo isso, a vida dirá, em todo o caso, a última palavra.

Gaspar pede um café, não que tenha algo a esperar desta zurrapa castelhana, há lá café no mundo como o português, ao menos nós acreditamos nisso e tanto nos basta. Mas quer defender-se do sono que vem reivindicando os seus direitos, os outros ficam-se por um aliviar de bexiga e uma garrafa de água sem gosto. Já voltaram à estrada, já a noite os engoliu, talvez o sol de amanhã no-los devolva sãos e escorreitos, caso nenhum castelhano venha a proibi-lo de se levantar.

sábado, 24 de agosto de 2024

As Aves 2-22

E assim perceberemos nós melhor porque sempre foi este enjeitado povo, mar em fora, primeiro de cruz alçada e depois mesmo sem ela, encontrar a felicidade entre os cafres de qualquer sertão, não  há entre nós e eles diferenças de maior, fazemos uns e outros os filhos no mesmíssimo lugar, estendendo no chão as mesmas pretas nós e eles, é uma santa fraternidade multirracial, assim ponham olhos em nós os altivos saxões da Europa, e no exemplo da nossa obra civilizadora. E, em diferenças havendo, chamamos o sipaio, que a nosso gosto porá as coisas nos lugares, quanto ao resto alguém decidirá, para que há-de o povo saber mais do que assinar o nome e contar os dias da semana, que são os de trabalho, que melhor vida se resume a tão simples contabilidade.

Lá foi Gaspar levado para o seminário, assim se dignem os senhores padres velar por ele, a propina é insignificante. Saiu de casa eram três da manhã, atravessou os descampados da Atalaia em cima da jumenta e gelaram-lhe as mãos a segurar a pequena mala onde guardava o bragal marcado a tinta hesitante. A mãe caminhava atrás, e Gaspar sentia-lhe o ranger das passadas no saibro do carreiro estreito, misturado ao trotar da burra, razões não faltariam a esta fuga para o Egipto se Egipto aqui houvesse, e nos acompanhasse um carpinteiro, José, podendo ser. Às seis horas da manhã chegaram à estrada real, o nosso Egipto ainda é longe e esta mãe vai desistir da fuga, vai deixar partir o filho e regressar a casa sozinha, atravessando o que resta da noite, o que sente só ela o sabe, e Gaspar apanhou a camioneta do Côa, que o deixou, contra sua vontade, na estação do comboio. Já chegámos ao casarão do seminário, com pouco mais nos dava o dia inteiro para chegarmos ao tal Egipto, e sem nos darmos conta já são horas de vésperas, e mal fizemos a cama e nos deitámos nela já tocou a sineta a chamar às matinas, e agora seguimos na forma para o estudo da manhã e já sentimos fome, faltam-nos cinco aulas para o almoço e não podemos distrair-nos, que o olho de Deus nos observa, se não for o do padre prefeito que vê muito melhor, e tem a mão pesada se nos deixamos atrasar. E amanhã virão três dias de retiro espiritual e purificação da alma, e durante eles inteiros manteremos silêncio, e vaguearemos na foma pelos caminhos da quinta, mirando de soslaio as cerejas nas árvores, vermelhas como lábios de eva, nós, simples instrumentos inscientes da vontade e dos desígnios de Deus, mesquinhos pedaços da argila em que ele próprio nos moldou e a sua mão cobre, se não é antes a deste padre prefeito que tão estranhamente nos toca. Um dia destes vamos nós descobrir, apanhados entre o rigor das leis morais que ingenuamente levamos à letra, e a frágil condição deste terreno barro de que nos fizeram, um dia destes, antes de percebermos a imensa hipocrisia que há nos gestos e nas palavras, vamos nós descobrir, não sem angústia, que Deus é um tirano, sem nos darmos conta de que não é ele que veste a sotaina e o solidéu. E havemos de levar a correr a nossa aflição aos ouvidos atentos do director espiritual, nós, pobres instrumentos da astúcia de satanás, aterrorizados com a heresia que se nos apoderou da razão, cerramos os dentes e dizemos a nós próprios que não é verdade e a heresia volta sempre, Deus é um tirano, Deus é um tirano, Deus é um tirano. Após o que, passados três meses, na exaltação da partida para férias, quando os nossos olhos brilharem de alegria porque já se revêem nos prados verdes da aldeia, havemos de receber, por interposta boca do vice-reitor, a notícia de que Deus se quer despedir de nós e nos dá carta branca, porque muitos são chamados, mas escassos serão os escolhidos. (Cont.)

segunda-feira, 22 de julho de 2024

As Aves 2-21

Gaspar também não sabe ao certo, nunca foi criatura de grandes surpresas, intui apenas que ser livre é cumprir, o ponto estará em saber quais são os mandamentos, e neste labirinto de razões nenhuma ariadne salvadora se mostra. Acreditou que a sociedade se compõe de classes com interesses que divergem, e que é preciso descobrir uma fórmula que os harmonize, se será a abolição das mesmas classes. Mas duvida de que os homens sejam todos iguais, pois tantas serão entre eles as diferenças quantos os diferentes lugares e situações de que o mundo se compõe. No íntimo desconfia da massificação, do nivelamento igualitário, que afoga a respiração das utopias na medíocre paisagem das ruelas de bairro. Acredita nos ideais que podem melhorar o mundo, e que é um dever de consciência e de cidadania lutar por eles. Mas pressente o erro das utopias que resvalam da realidade para o desenho e o sonho, e acabam agarradas à jangada náufraga dos dogmas, reproduzindo velhos vícios, semeando vítimas novas. Habituou-se a ouvir endeusar as massas, porém no íntimo desconfia da sua real consciência, e teme que isso não passe de facilidade retórica, cujo eco reboa nas fachadas das grandes praças, para consumo nos comícios. Apercebe-se de que os seus movimentos resultaram sempre de opções da razão, ele nunca foi um proletário, seja lá isso o que for. Fora de mesquinhos interesses a sua contabilidade, e bem diversas teriam sido as suas posições. Por isso isso se sentiu sempre fora do seu lugar. E talvez por isso vacile tantas vezes, e tantas vezes lhe custe compreender o que acontece. Assim é que a sua atitude foi sempre recolhida e discreta. Desafiou, porém, riscos que pressente, e cuja dimensão é incapaz de avaliar. Não pode hoje prever as atribulações que o esperam, e muito menos saberá que vinte anos depois não terá cessado ainda o seu calvário.

Mas Deus dá o frio conforme a roupa, é o povo que o diz, se o seu dizer está certo. No silêncio da noite ouvimos apenas o ronronar deste motor que nos transporta, a estrada é macia e cómoda, sem sobressaltos de molas, passa por nós, às vezes, um camião pesado e a onda de choque estremece-nos, acorda-nos o roncar das engrenagens, e só então nos damos conta do grande silêncio em que vamos, parece geral a tranquilidade, se não for erro da nossa apressada avaliação. De Gaspar já sabemos que neste manto se resguardam apenas desconforto e incerteza, ou alguma pusilanimidade, no ponto em que as coisas estão só a grande força ou a inconsciência da juventude lhe pode servir de alguma ajuda. Dos outros nada sabemos, e a lua já cá não está para nos iluminar, acaso se fartou desta monotonia e foi pregar a freguesia mais animada.

Quem bem prega é frei Tomás, pois, para pregador, essteve Gaspar apenas prometido. Saiu da escola na desgraçada época em que o liceu era ainda um luxo de gente rica, e de novo nos cai nas mãos a questão de saber se o mundo será igual para todos, ou se não é antes para todos diverso, pela simples razão de que para todos igualitariamente não chega. Acabou há alguns anos a guerra que dessangrou a Europa, da qual um sopro divino nos livrou, aoque se vai ouvindo, e afinal é no nosso corpo que as mais fundas feridas se notam, apetece desejar que ela tivesse passado por cá e deixasse tudo arrasado, ao menos entenderíamos o porquê das coisas. E em vez de passarmos a vida a agradecer a paz que nos deram, sem a termos merecido, aproveitávamos para mudr alguma coisa, percorre-se o país inteiro e não há uma escola fora das capitais de distrito, tudo o resto são comendas, alguma paisagem e trabalho de sol a sol. Não tardam muitos anos e havemos de conhecer os invernos de Paris antes de irmos a Lisboa, e falaremos francês antes de sabermos ler a nossa língua, e andaremos de passeio nas margens do Sena, aos domingos, antes de vermos o mar e as dunas da nossa terra, e teremos carreiras expresso para os cantões suíços antes de as termos para ir à cidade, de que nos serviriam elas. (Cont.)

terça-feira, 2 de julho de 2024

As Aves 2-20

Gaspar entretém-se com estes pensamentos enquanto deambula cabisbaixo pelo saibro das ruelas, pergunta-se pela racionalidade do mundo e não sabe ainda que não há, nesta vida dos homens, racionalidade nenhuma. Um dia virá a descobri-lo por força de tntas perguntas lhe ficarem sem resposta, mas não sabe ainda que tudo quanto consegue o comum dos mortais é mover-se por paixões e instintos vagamente primários, às vezes pela força dum sentimento, quase sempre por interesses que é melhor manter privados. Nestes tempos de sonho à solta, acreditou que era possível uma outra forma de viver, e que, essa sim, havia de apurar nos homens uma outra racionalidade. Não sabe ainda que o sonho de transformar o mundo é uma febre de idealistas inquietos, condenados ao fracasso e ao desprezo geral, um dia virá a descobrir que só o poder ou a violência, última forma de poder de quem outro não tem, atraem a atenção e o respeito dos homens.

Mas isso Gaspar não o sabe, por enquanto. Nes tempos de galope desenfreado, acreditou numa verdade que se imporá por si mesma, tanto melhor se alguém lhe for abrindo caminho. E viu na revolução a oportuna ocasião de gritar contra a injustiça e a mentira, como se tais coisas, em absoluto, existissem, a ocasião de chamar a terreiro os poderosos, e vê-los assim, ridículos e frágeis, sem peitorais de alfaiate, assustados, de caças na mão, como qualquer um. Gaspar ainda não descobriu que neste mundo só há injustiça quando uma vítima dela tem consciência. E que o poder só mente quando os seus discursos esbarram no riso geral e provocam o desprezo do povo. Afora isso, o poder exerce-se, e legitima-se a si mesmo, e ninguém se pode queixar dele. A injustiça e a mentira, referendadas pelo silêncio geral, transformam-se em ideologia e em catecismo, são a legalidade. É por isso que a suma essência de todos os poderes está em descobrir a fórmula capaz de alienar os homens, capaz de os privar da liberdade crítica, dando-lhes em troca o sono dos justos. E desde as promessas de boa-ventura no além, a um par de safanões dados a tempo, não contando com outras sofisticações que a seu tempo virão, vasto é o arsenal já inventado, de efeitos comprovados, por atacado e a singelo. Velha de séculos é a escola em que os poderosos aprenderam a conhecer as fragilidades do inimigo, e lento é o processo em que o homem comum ganha consciência dos seus direitos e da força que tem.Gaspar dá-se conta, embora tardiamente, de que averdadeira revolução é um gesto de rebelião estritamente pessoal, que tem que ser elaborado por cada um, e que só um voluntarismo perigoso a pode transformar num acto vanguardista, em que uns se vêem arrastados por outros, e um só iluminado supõe representar a voz de todos. Um dia achar-se-á sozinho, atado ao pelourinho da praça, culpado de todos os males. Por isso, não há-de a revolução gritar  contra a injustiça e a mentira, que são relativismos privados. Antes reivindicará a liberdade geral de cada homem, pela qual será, cada homem, responsável. Ver-se-á então o que faz cada um desta caixa de Pandora, das delicadas benesseas que traz, e dos agudos cuidados que exige.

Mas não há, sobre o mote, geral unanimidade, conforme se tem ouvido. Liberdade é o trabalho mais o pão, é levantar os punhos pela revolução, é ter cada um segundo a precisão, liberdade é votar em chegando a sazão, eu prometo-te o céu e tu dás-me a eleição, é não haver poder, é não haver patrão, é não ser proibido escarrarmos no chão, liberdade é cultura, liberdade é saber, é fazer cada um tudo quanto quiser, sobretudo respeitinho pela propriedade, isso é para mim a real liberdade, liberdade é ter cada um seu lugar, é uns a obedecer e outros a mandar, liberdade é poder, liberdade é mantença, um dia saberemos o que isso vem a ser, e se cada cabeça der uma sentença, talvez não haja, afinal, mais nada que aprender. (Cont.)

domingo, 2 de junho de 2024

As Aves 2-19

Que filhos são cadilhos toda a gente o sabe. Lá vêm estes galrejando risos pela rampa acima, senão gritos e choros, ao menos estes não pedem sangue, como as espingardas, singela candura a desta infância que tão bem aproveita as folgas do estado de sítio, parece isto uma geral gazeta na cidade, ninguém está onde devia, noutra ocasião ficaria Gaspar encantado com a sociedade, mas não assim, ó mãe, está ali um homem sozinho, de cara triste, sentado ao cimo do pinhal. O rebanho dos garotos está cada vez mais perto, Gaspar reconstrói-lhes pelas vozes o volteio das brincadeiras, perde-se a imaginar-lhes caras e estaturas, cabelos e cores de bibes, o que vale é este tufo rasteiro de arbustos que ali vai sobrevivendo, não é Gaspar um coelho bravo, mas por uma vez qualquer um pode sê-lo.

Estes índios vieram brincando até ao cimo do pinhal, e a mais não se aventuraram. Gaspar jaz, imóvel, de costas no chão frio, como um rei de pedra que se cobriu de ramos de oliveira, parece contraditória a figura e nãoo será tanto assim, a vida tem destas ironias. Em todo o caso, ele próprio escolheu o seu papel nesta história, não tem que se queixar da pele que vestiu, mais valera ter-me ido embora, caraças, saía por aí tranquilamente e nem os putos davam por mim, se algum sacana aqui mete o focinho curioso ou me desenterra a pistola, a tarde é longa e tem que passar, tende paciência, Senhor, chamai as criancinhas, fazei-as ir a vós, já é chegado o tempo. É fácil rirmos nós desta comédia que aqui se representa, e tantos são os actos e peripécias quanto é infindável o poder de improviso destes figurantes, o pano só baixou quando um aguaceiro veio correndo da calçada do Lumiar, e obrigou a trupe a debandar desordenadamente encosta abaixo.

Gaspar libert-se enfim da camuflagem, tem a véstia molhada e gelaram-lhe os pés da imobilidade, agora só lhes resta caminhar por essas ruas até que a noite chegue. Lá vai ao longo do alto muro do cemitério velho, se modos há de um vivo passar despercebido é misturar-se com os mortos, outra vez parecerá ironia mas não é, que para alguma coisa haverá de servir o rio do esquecimento que estes já cruzaram. Está entreaberto o pesado portão de ferro forjado e Gaspar respira enfim descontraído, não é este um lugar de brincadeiras infantis e os mortos ficaram indiferentes ao estado de sítio, para eles nada se passou, para eles é já a vida toda um recolher obrigatório.

Há aqui meia dúzia de ciprestes que resistem à febre dos jazigos e das lápides funerárias, e, lá ao fundo, uns restos de sebe de buxo sobrevivem à praga das sepulturas perpétuas. Tudo o mais é um sufoco, uma claustrofobia para estes defuntos, quando  morreres esvoaçarás invisível entre sombras impotentes, sem que haja de ti memória no futuro, não assim para estes vivos, que todos querem aceder à imortalidade, todos se julgam dignos de figurar nestes mapas do tempo. Os antigos, no tempo em que as tardes eram sossegadas e o mundo era ainda uma coisa compreensível, esses tinham, ao morrer, o bom senso de se empilhar na propriedade horizontal de um jazigo de família, se o havia, mesmo os que eram ricos e se julgavam famosos poupavam nestes loteamentos. Hoje, qualquer um reclama um lote próprio, vivenda exclusiva e jardim anexo, num imenso desperdício de espaço, onde sóos caracóis pastam as ervas e bolçam o nácar dos humores. Por este andar, amanhã os cemitérios não comportarão mais sepulturas perpétuas, estas perversões da propriedade, cujos donos deixaram de existir. E elas hão-de saltar para as azinhagas circundantes, alinhar-se-ão à beira dos caminhos, ocuparãoo lugar das hortas e searas, misturar-se-ão com as perpétuas campas dos gatos e dos cães que também sonharam com a imortalidade, hão-de alcançar a orla das praias, os mortos que nunca viram o mar vão assustar-se com as marés vivas de Setembro, e acabarão,quem sabe, por ter que se espalhar pelo fundo dos oceanos. E um dia, quando todo o vasto mundo or um campo santo inútil e pejado de fantasmas ocos, os homens descobrirão que apenas a indiferença das pedras tumulares contempla a sua maçadora imortalidade. (Cont.)

sábado, 1 de junho de 2024

As Aves 2-18

Desce Gaspar do autocarro suburbano e sobe a encosta do bairro, é meio dia e o bairro está estranhamente silencioso, se deserto ou recolhido não o saberemos, não há ninguém no estanco sujo da esquina, descontando um locutor afogado no aquário da velha televisão doente de fantasmas, enquanto debita na atmosfera dde carapaus fritos mais um comunicado, partiu um avião sa Força Aérea com cinquenta prisioneiros para o norte, certamente com destino a Custóias, as informações militares mantêm-se reservadas sobre o evoluir da situação e do estado de sítio na cidade, reservada também namora esta velhota a fruta que o merceeiro expõe cá fora, pois que tudo são horas de negócio e aflito andará o povo mas comer sempre come, assim possa, que feito será das crianças que não há no pátio desta escola, as ruas estão ali por estar, admiradas, quem sabe, com este vazio de moradores, esta mulher que ali vai d blusa vermelha não sabemos quem é, este homem de sobretudo é Gaspar, e vao tocar à campainha dum amigo, ali no segundo andar.

Prime, de novo, o botão, num arrastado toque de urgência, que fica sem resposta. Nem admira, quem poderá ficar em casa hoje, depois que a velha assim comeu as nêsperas do poema, ele haverá ordens do sindicato, talvez mobilizações do partido, Gaspar domina a perturbação e o desamparo em que está, talvez à noite, Deus queira que à noite.

A velha pistola de guerra mal se lhe acomoda debaixo do sovaco, a guerra parece ter terminado mas deixou este inchaço inútil e suspeito, quem dera que só este fosse, é preciso arranjar modo de passar o dia fora de vistas curiosas. A encosta prolonga-se por cima do bairro, há mesmo além um arremedo de pinhal que resistiu às casas de cimento, uns campos de antigas oliveiras, um cereal raquítico, o incómodo abcesso da pistola acaba por dirigir Gaspar na direcção da mata. Estes campos estão vazios de gente, e debaixo deste pinheiro mais copado escava Gaspar um buraco onde enterra a arma.

As nuvens agitam-se na atmosfera outoniça da tarde, se também terá chegado ao céu o desassossego da cidade, o vento corre fresco entre o casario que por estas encostas se derrama, por entre as vivendas clandestinas que assomam aos picos de Camarate como rebanhos de cabras a tasquinhar restos de capim do verão, os rebanhos das melancólicas cabras de Lisboa, que aos domingos se aventuram até àspistas da Portela e acabam a galopar à frente dos guinchos das hospedeiras de bordo, bolsando pelos cabeços o enjoo do querosene das turbinas. Não tarda muitos anos e nenhuma daquelas hortas sobreviverá lá em baixo, à beira do ribeiro que há-de ser encanado em betão, ceifada a ilusão verde dos caniçais da margem. Tempos virão em que será pouco todo o espaço para rasgar auto-estradas e circulares periféricas, não há fome que não dê em fartura, como é sabido, alguns dirão que mais fácil há-de ser então fugir daqui, com tanta via aberta, outros acreditarão que por aí há-de entrar à força o progresso vindo do estrangeiro em camiões gigantes, em contentores alemães, em paletas espanholas.

Mas isso é o que há-de ver quem lá chegar. Aqui, do alto da colina em que está sentado, relanceando o olhar à escassa e confusa história pátria que lhe permitiram conhecer, e à resumida experiência de vida acumulada, o que vê Gaspar é um povo submetido e parado na infância, esbracejando há séculos contra a miséria que Deus manda,ou o diabo, pastoreado por tiranetes a golpes de hissope e de bastão por quantas paisagens do mundo abriga a rosa do sol, esbulhado de consciêcia e de dignidade em trocas de favores, da salvação eterna e outros, bem aventurados serão os pobres de espírito porque é deles o reino dos céus. O que vê Gaspar é um povo que parou, exangue, à beira dum mar de névoas, apalermado da maresia, um gigante de feira que vai curando as chagas das pernas à sombra dos padrões que o vento semeou nas costas de África, arquejando ao peso das múmias da história enquanto rega as couves, enquanto procura exílio nos subúrbios da Europa a ver se escapa à fome, enquanto vai digerindo o fardo inútil dos mitos que arrasta como uma jibóia exausta, um povo que tem, para tudo, resposta na ponta da língua, menos para as perguntas que é, ele próprio, incapaz de fazer, e que trota a pé, a caminho de Fátima, à procura do extremo, desesperado e definitivo milagre. Nunca mais, desde que o forçaram à Índia, acertou o passo com a própria sombra. E agora, fatal surpresa, aí tem pela frente a liberdade toda de fazer com a história as contas atrasadas, acaso será esta a maior penitência que lhe pode ser dada.

E estas são divagações amargas nossas, está bem de var, maneiras de brincarmos com sérias coisas enquanto vai correndo o preguiçoso tempo, Gaspar está ali sentado debaixo do pinheiro, afogados os olhos numa aflição miúda, a bem dizer vai resistindo ao medo, e não imagina o que virá a acontecer daqui a vinte anos, se o soubesse mais aguda seria a sua angústia.

Nem sequer sabe o que agora corre na cidade, já perguntou a este vento que passa e ele não disse que Caxias está a encher-se de presos, não confessou que em Santarém também os há, que outros chegam em levas a Custóias já o locutor o anunciou, mas nem um nem outro falaram das algemas que lhes prendem as mãos às costas durante o voo, nem das metralhadoras que os pastoreiam enquadrados assim na linha de mira, sobre as espingardas que pedem sangue nem um nem outro se traíram, nem dirão que há baionetas faiscando pela desforra, meu general, consideramos que tudo vai ainda a meio e muito está por fazer, ditosa pátria que tais filhos tem. (Cont.)

sábado, 25 de maio de 2024

As Aves 2-17

Já outros entendiam a vida das sociedades como uma barcaça antiga, a hesitar entre disputas e ralhos, dirigida porémpelos escolhidos em eleições democráticas e livres, ou por alguns mais expeditos, como vezes bastantes se tem visto e se há-de tornar a ver. Porém, enquanto uns e outros se tomavamde tais razões, velhos senhores de ânimo recobrado começaram a mover armas e tropas, afinando estratégias em segredo, enquanto bombistas multiplicavam assaltos e atentados, e o governo preparava a saída de Lisboa, declarando greve à impossível função de governar. Por isso Gaspar ficou surpreendido quando as movimentações das tropas rebentaram, participou nelas com o sobressalto que já vimos e as dúvidas quenos confidenciou, e aguardou um desenlace que lhe não traria surpresas. Foi só asi próprio que enganou, se engano houve. Porém, mais por saber o que não queria, do que por estar certo daquilo que buscava, nunca cedeu aos sinais de derrocada, como fazem os ratos em cheirando a água nos porões.

Derrocada, porém, não foi o que agora aqui houve, nada mais que um desfalecimento passageiro, um baque no chão de que este companheiro já se recompôs, a embaixada segue rua adiante, o caminho espera por nós.

E é longo, este caminho. Rodando no céu, a lua descaiu para o indistinto horizonte, não chega este luar para claramente iluminar o mundo, se o mundo se terá tornado vasto demais para nós, ou nós por demais minúsculos perante ele.

E talvez seja isso. São todos os homens formigas demasiado minúsculas perantea vida, mesmo as que seguem de vaidoso rabo alçado no carreiro, bêbedas deste verão que aí está e não vai durar muito. São bonitos os sonhos que na arca do peito lhes rebentam, mais fáceis de sonhar quede materializar, que estes sonhos pedem o que nunca foi feito, e exigem, para viver, um mundo que ainda não houve. É demasiado simples decretar a igualdade geral, e que nenhum homem construa a sua felicidade com o sofrimento alheio. E tavez aí se funde este azedume que em Gaspar desvendámos, e esta intolerância com fraquezas que a si próprio não permite. Em rigor, o que ele sente é o desconforto de ter persistido em acreditar, mesmo quando a sua intuição lhe segredava os perigos que aí vinham, em acreditar na litania da capacidade milagrosa das massas,dos operários, dos camponeses, dos soldadose dos marinheiros, em acreditar que só os pequeno-burgueses pusilânimes descrêem da força e do avanço imparável da história, sem se darem conta, uns e outros, de que apenas são já uma trupe de robertos de feira, nas mãos de quem recuperou o comando dos acontecimentos, e os manipula em silêncio.

Poderia Gaspar ter ficado estendido, como outros, debaixo da grande figueira bíblica que esta vida é, olhai as aves do campo, que não semeiam nem colhem. Sejas tu homem cordato e reverente, sabendo esperar alguma coisa te há-de vir à mão, quando os figos maduros, em Setembro, vierem a cair. Foi culpa sua ter desprezado este saber de séculos, se presunção temerária não foi antes o seu pecado original. Já ao pai adão rebentaram os beiços deste leite, e mais eram do paraíso os figos verdes que comeu. (cont.)

segunda-feira, 22 de abril de 2024

As Aves 2-16

O companheiro fez as despedidas telefónicas, está encostado ao balcão e perdeu visivelmente a cor, qualquer coisa lhe deserta do semblante, se não é a luz dos olhos que inesperadamente selhe apaga, agarra-se ao balcão e desaba redondo no duro soalho. Discreto alvoroço geral, e de novo Gaspar não compreende, a bem dizer de novo a situação o escandaliza, agora por caricata, se por ela poderemos nós avaliar e perceber inexplicadas coisas, segunda vez que tal comentário, assim azedo e suspeitoso, escapa do peito de Gaspar, que coisas serão elas. Se não houver aqui diferenças de galões e de responsabilidades, ficamos sem saber a que vem esta subtil censura, este protesto fechado. A um subalterno desilude sempre a vista destas e outras fraquezas, é como quem diz, onde haveríamos nós de ter podido ir com gente assim, se entrega um homem a outro as suas confianças, natural é aguardar que ele esteja à altura delas. De facto, Gaspar nunca se deu à boca de cena nos múltiplos palcos da revolução, embora a estranha essência das coisas conferisse aos militares fundamental papel. Nunca usou da ofertada intimidade das velhas secretárias, pontes discretas dos antigos patrões silenciados e das suas conspirações, nunca fez depender da sua opinião o correr dos rios, nunca mergulhou no vulcão das escolas, das empresas, das herdades na planície, onde o povo, como um cavalo de súbito sem freio, subitamente irado, se debatia entre contrários gritos, agora contra o fascismo e logo contra o social-fascismo,ninguém lhes perguntou se sabiam do que falavam. Outros o fizeram por ele, assim se expondo à euforia da glorieta fugaz, vaidosos talvez por se terem tornado personagens de entrevistas, com direito a sentença e opinião. Discretamente, Gaspar sonhou apenas o sonho colectivo, que o houve, e remou muita vez contra si mesmo, mas a euforia geral empurrou-o a silenciar vagos augúrios de catástrofe.

Ultimamente pressentia, arrumado numa prateleira administrativa onde um coronel lhe entregava tarefas sem sentido, como um sísifo qualquer condenado a alinhar, das nove às cinco, inúteis listas de pessoal em quilométricas folhas de papel quadriculado, ultimamente pressentia, já isolado e sem contactos num segundo andar de larga escadaria de madeira, que os pulmões da revolução sofriam de bronquite asmática, como um cavalo a rebentar dos quartos à vista da meta de chegada, pressentia que a euforia primaveril da liberdade dera lugar a um outono melancólico e cinzento, em que as facções surgidas no povo e nas tropas se afadigavam a cozinhar intolerâncias, e que ambos os campos aguardavam apenas um despize do adversário para o degolar. A princípio tudo era unidade, todos queriam o socialismo e a revolução. E os poderosos, que a temiam, traziam na consciência um peso tão antigo, que só acharam refúgio seguro no exílio ouno silêncio das alcovas. Porém, aos poucos, se  foram separando as águas entre as partes. Uns aprenderam a ver a história como loga sucessão de opostos insanáveis, infatigável e verdadeira guerra de classes, a dado ponto os interesses em vigor bloquevam a sociedade, tornavam impossível a expansão e o desenvolvimento geral. Qualquer avanço exigia a ruptura violenta que só a revolução trazia, uma classe nova arrancava às mãos da antiga os lemes do poder, se quisessem mudar o rumo da sua vida os trabalhadores tinham que suceder à esgotada burguesia, já esta fizera o mesmo à esgotada arstocracia do despotismo antigo.Era assim, por saltos bruscos, que a ahistória dos homens mudava de qualidade.

sábado, 6 de abril de 2024

As Aves 2-15

Todos têm as pernas entorpecidas, e Gaspar percorre uns metros no passeio para aquecer os joelhos que protestam da prolongada imobilidade, pior está o companheiro que sofre de mazelas da coluna. A mulher é a mais animada e louçã, efeito prodigioso do prolongado sono ou milagres da juventude, a bem dizer todos aqui são jovens, o bastante para não podermos opinar que alguém seja velho, há nestas palavras uma irrespondível relatividade que havemos de aceitar, e mais facilmente se entendermos que esta e todas as revoluções se alimentam de sangue novo, é dos verdes sonhos que vivem, a bem dizer todos aqui são jovens, duas vezes fica dito, e esta mulher mais que todos, por isso vai assim viçosa e guapa, não sabemos o que seria deste mundo sem as mulheres.

João já lá vai em busca dum estanco restaurador, parece este conjunto uma romaria de paisanos perdidos na cidade, faltará aqui o poeta a olhar as fachadas como quem busca o sete-estrelo, tão difícil de ver neste estranho céu, ainda bem que afinal não demorou a encontrar. O comedor nada tem de singular e próprio, que este mundo é todo ele uma redonda uniformidade, um balcão à direita, a parede rendada de garrafas antigas cobertas de pó, ao fundo uma porta que dá para o reservado, e é nele que estes viajantes procuram algum recato e discrição, chuletas de cerdo para todos e uma botelha de sidra, produto regional garantizado para ustedes, afinal não ra desagradável, João paga a conta, o caminho espera por nós.

Antes que se partam vai este companheiro telefonar, Gaspar supõe que para Lisboa, mas não sabe se de razões do coração ou de outras mais conspirativas se trata, ele não poderia explicar porquê mas não lhe agrada o gesto, que toma por leviano, se por ele poderemos nós avaliar e perceber muitas inexplicadas coisas, acaso será apenas injustificado temor seu, ou sua ingénua intolerância. E enquanto espera perdeu-se-lhe na rua o olhar, triste, se não inseguro ou aflito, há esta onda de melancolia a desabar-lhe sobre o coração, este niagara a dissolver-lhe a força dos membros, simples fruto da nostálgica hora ou mais completo diagnóstico Gaspar não o sabe ao certo, se acaso terá tudo isto algum sentido, está um homem a meio dum rio sem poldras para trás nem para a frente, a meio dum rio a que a enxurrada levou as margens, subitamente engrossou a torrente e engoliu-as, o que fazia aqui falta agora era abrir-se este mar vermelho e passar, por seu pé enxuto, o povo eleito, não seria esta a vez primeira, mas o mundo ainda não é igual para todos. (cont.)

segunda-feira, 18 de março de 2024

As Aves 2-14

As conversas são como as cerejas, é isto um facto por demais sabido e redito, mais ainda se de imaginações e lembranças se trata, vento que não cansa, rio que não pára de passar. Vejamos o caso de Gaspar, que temos acompanhado, se exemplo nos faltar para a demonstração. Vai esta sossegada barca assim Castela adiante, no mar calmo da noite, tão apertados os viajantes por força do escasso habitáculo que mal podem mexer-se, mais parece que tomámos lugar na arca de Noé. Esta mulher dorme, acaso tem o espírito mais leve, ou consegue apenas aconchegar melhor o pequeno corpo no minúsculo assento, o luar não chega para animar esta paisagem que de seu natural é monótona e repetitiva, e no caminho apenas o condutor reparou numa patrulha de carabineiros, brutamontes altos que ali estavam. Tal é o visível sossego, que poucas palavras temos ouvido, mas o frenesim das lembranças e o cavalgar dos pensamentos tem sido o que se viu, e vai agora a missa apenas em metade.

Quem não precisa de assistir à metade restante somos nós, baste-nos o que já vimos para tirar conclusões. Estes dois são clandestinos que o desenrolar da revolução empurrou a buscar outros ares, por certo sob pena de males maiores, é bem verdade queimar-se quem com fogos brinca, se não é mais concreto dizer que nenhuma revolução poupa os filhos. Não inventámos nada desde os velhos gregos, já entre eles havia quem não soubesse furtar-se ao implacável destino, acaso será a vida de cada homem vera revolução, desde que o mundo começou.

Gaspar não desencostou a cabeça da pequena vidraça, um rosto fechado assim apoiado na mão esquerda, mas na sua ideia vai ainda a entrar no autocarro já falado, avança, lenta, a bicha dos passageiros, compra e não compra bilhete, que este motorista não gosta de fazer tudo por atacado, guiar o mastodonte e cozinhar os trocos, se lhe perguntássemos diria que enquanto se capa não se assobia, é esta discutível ciência o mais eficaz modo de propongar a vida. E só a palavra de João, que assim se chama este condutor são cristóvão, logrou interromper-lhe o devaneio, e trazê-lo de novo ao momento. Salamanca está aí, não tarda chegamos aos arrabaldes, o melhor é comer alguma coisa e dar uma folga às pernas, ainda há muito que andar, a dormida é só em Palência. Alvíssaras capitão, alívio geral neste convés, lá está o clarão nocturno da cidade, são dez da noite, uma aguada vem mesmo a calhar. (cont.)

domingo, 17 de março de 2024

As Aves 13

É talvez por estar distraído das lições da nossa história que este gasolineiro nãosai da sua pacatez, nem desliza sorrateiro para o telefone ao receber os talões militares, senhor general dos comandos, sei como tem vocelência no coração uma alma de patriota, tenho acompanhado nos últimos dias tudo quanto tem feito para nos livrar do perigo comunista, pois olhe que passou agora aqui um desses traidores à pátria, num carro que também é vermelho, o melhor é deitarem-lhe a mão. Este gasolineiro não quer saber, acaso estará também farto desta pátria, limita-se a olhar mais atentamente o cliente paisano ao receber os talões militares, e, se perguntou aos próprios botões de que lado estará este na batalha que aqui se trava, não exteriorizou a pergunta e Gaspar não tem que responder, moita carrasco. Pelo sim pelo não arranca intranquilo, e mesmo sem razão avança mais depressa, à medida que se mistura no trânsito citadino.

Esta cidade está hoje mais sossegada do que é seu costume, dizemos nós quando deveríamos precisar que parece desconfiada e temerosa, os olhares comuns parecem outra vez os antigos, olha este homem o céu no temor de que ele traga chuva, quando ontem estava bem seguro do sol que todos os dias o sol manda. Olhares outros mais triunfantes haverá também por aí, não é difícil imaginá-lo, mas desses não encontrou Gaspar nenhum sinal na rua. E não é por distracção. Esqueceu-se de que, sendo a rua o natural lugar das emoções do povo, outros lhe preferem os salões. Deixa o carro no Campo Pequeno, a mulher o irá buscar. E é mais descontraído e confiante, por se ver assim dissolvido entre os passantes, que sai de novo para o subúrbio, na camioneta do Barraqueiro.(cont.)

quinta-feira, 14 de março de 2024

As Aves 12

E Gaspar lá fica, enquanto a situaçãose vai desmoronando. A rádio traz notícias da queda de quartéis, notícias do estado de sítio na cidade, notícias das prisões e do medo. Os telefones já não funcionam e Gaspar vai-se embora, são oito da manhã e ele não pode voltar a casa. Leva no bolso uma velha pistola de guerra, por que será que uma lembra a outra, da revolução e da guerra falamos, sempre tão próximas ambas, quem quiser a revolução tem que aceitar a guerra, parecia  que tornar o mundo um lugar habitável havia de ser desejo natural de todos os homens, sonho a construir em cada dia, pacificamente. Porém, muito seengana quem cuida, e muito mais Gaspar, que só mais tarde aprenderá não haver salvação para os homens, porque nem todos dela precisam, dirão sempre alguns que já estão salvos, e muito bem, assim.

Esta manhã é chuvosa e enfermiça, longos nevoeiros cobrem o rio, como poderia a mesma natureza ficar alheia à consumição que em tantos peitos lavra, e Gaspar lembra-se de esconder a pistola num dos bancos do carro. Atravessou a vilória encolhido atrás da roda do volante, desejando que ninguém dê por ele, e agora vai deixando para trás a charneca em direcção ao Porto Alto, se haverá barragens na estrada, e, havendo, como reagir-lhes, pergunta que deixa sem resposta enquanto passa, temeroso, a entrada do campo de tiro de Alcochete e se lembra das experimentações que andou por estes ares a fazer, do velho material de artilharia que era preciso adaptar aos aviões, já não havia material para o cansaço africano, já ninguém nos vendia material para a teimosia africana, o império aguentava-se preso por arames, e Gaspar lembra-se de quem aqui ficou pulverizado por má selecção duma espoleta, para que o império se aguentasse mais um pouco. A morte não énada do outro mundo, pensa Gaspar, salvo quando se morre ao serviço duma mentira colossal, caso esse em que tudo se resume a perda vã e total desperdício.

Os sobreiros da paisagem dormem ainda na humidade cinzenta da manhã, não é nada com eles, o trânsito é escasso na carreteira estreita, e vendo nós a sossegada marcha desta viatura não adivinhamos a agitação que vai lá dentro, o galope sem freio deste peito, o sobressalto de cada curva, se consegues chegar a Vila Franca tens as estradas saloias à mão, cala e confia, coração.

Numa esquecida bomba de gasolina tratou de encher o depósito, de nada servirão, no futuro, a este viajante, os talões de combustível que traz no bolso, não demora muito passará na televisão a sua cara de menino com apelos de delação e de captura, juntamente com outros igualmente perigosos traidores, tem esta pátria reincidente experiência denunciante e acusa-cristos, é um corropio de séculos, verdade que Gaspar não é judeu, nem bruxo, nem cristão-novo dado a marranices, não é estrangeirado, nem liberal, nem pedreiro-livre, nem comunista se lhe pode chamar, a bem dizer, é apenas um traidor aos objectivos da revolução, quem puder que entenda. (Cont.)

sábado, 9 de março de 2024

As Aves 11

As coisas políticas assustavam a sua ignorância, e a violência desordenada das consignas dos partidos fazia tremer a sua timidez insegura, qualquer che guevara de bairro impressionava o seu incerto pensamento ideológico, não podemos perder esta oportunidade histórica de implantar o socialismo, é preciso aproveitar a momentânea desorientação dos inimigos do povo e assestar-lhes golpes demolidores, e uma táctica assim é que tinha dado jeito na terra dos macondes, no planalto de Mueda.

Mas o povo não era um animal homogéneo, de contornos concretos e incapaz de incoerências, e isso ainda Gaspar o não sabia. Porém, foi-se dando conta de que o mais pequeno gesto íntimo, o simples modo de olhar o mundo e os outros homens tinha sempre uma significação política. Julgou mesmo descobrir que a revolução lhe trouxera resposta para enigmas do mundo nunca decifrados, e lhe desatara mesmo os nós da compreensão da sua própria vida pessoal. Sentiu que a revolução vinha resgatá-lo também a ele, e Gaspar escolheu o seu campo, sem avaliação de riscos. Andou por herdades na apanha da azeitona, assistiu a comícios, gritou em manifestações, acorreu a assembleias, sentiu raiva e temor em cada atentado bombista, em cada assalto, em cada assassinato, descobriu que não há limites para o impudor dos poderosos assustados, ainda não tinha então concluído que os ricos têm sempre razão, já que, quando a não têm, vem a fraqueza dos pobres oferecer-lha.

Gaspar hesita,mas já tinha escolhido o seu campo, e por isso estendeu as pernas para fora da cama e deslizou dos lençóis, cuidadoso, não valia a pena acordar a mulher. Os filhos dormiam, doces, nas camitas, e o comboio que passava perto, silvando vapores na ravina, lembrou-lhe a premência daquela voz que viera acordá-lo. Andavam cavalos à solta nos verdes prados da revolução e Gaspar não sabia de nada, ninguém lhe comunicara intenções nem planos, nem isso era importante, a sua mão não era indispensável, mas onde está a revolução que dispensa mãos, e que mãos dispensam a revolução depois de ela tomar assim o freio nos dentes.

Havia tropas amigas na rua, nos últimos dias era duma evidência transparente que ficaria sem cabeça quem a expusesse, e por isso Gaspar não compreende, sabe só que as tropas nunca se movimentam sem ordens, não sabe ainda que nunca saberá donde tais ordens vieram. Mas vai, porque já não pode recuar. Vai para uma base militar onde encontra confinada num salão toda a oficialidade, pastoreada pela tropa alevantada enquanto joga às damas, enquanto dá umas tacadas no bilhar, enquanto a meia voz comenta o insólito, quem sabe se inesperado, súbito lance. Gaspar ensaia uma explicação do que está a acontecer, tenta mostrar os limites da sublevação, procura legitimar-lhe os objectivos. Ainda não sabe que a razão não desempenha aqui qualquer papel, outros são os motivos que levam os homens a ver, não o que está, mas o que querem ver, numa revolução. E ele próprio é quem vê, pela primeira vez, o ódio nos olhos dos camaradas de ontem, o ódio nos olhos dos companheiros de África de ontem, que lhe chamam traidor e não entendem, alguns cospem-lhe aos pés e não entendem que se possa desejar outra coisa, que se pretenda substituir a definitiva rigidez de cadáver dos códigos deontológicos pelo calor suado e desprezível do povo, não entendem que se possa trocar esta vazia, mas certa, segurança, pela duvidosa aventura de indefinidas utopias, por sonhos incertos de transformar o mundo, assim é a tropa, a fingir-nos a vida para nos interditar o ofício de a criarmos, e eles sem entenderem que chegou o momento do resgate, e que não o aproveitar será deixar toda a história a meio. (cont.)

sábado, 2 de março de 2024

As Aves 10

Dizia isto a pátria, enquanto empilhava nos anexos do hospital militar os destroços dos mutilados, Gaspar tinha-os visto passar de relance em cadeiras de rodas, amamentados por enfermeiros discretos, o olhar vazio confinado a corredores sombrios que apenas pesadelos habitavam, dizia isto a pátria ao mesmo tempo que escondia atrás de muros altos, para que ninguém os visse, os restos da guerra que o furor de marés longínquas vinha arrojar ali, como troféus perversos. Nessa tarde, ao descer a João XXI a caminho do Campo Pequeno, Gaspar ouviu claramente o que a pátria dizia, olhou para si próprio e sentiu-se um cordeiro imolado.

Mais tarde voltou à África, ao aroma azedo dos bairros negros e aos lamaçais do Corubal, às evacuações de soldados estropiados das pistas de terra do mato, leve-me depressa, meu alferes, não me deixe morrer, meu alferes, ambulância à chegada com médico e sangue, médico e sangue, mádico e sangue, voltou aos alertas dia e noite em aviões de museu, despejavam-se bombas em catadupa sobre as bolanhas silenciosas, sobre a paisagem de rios indiferentes, sobre a África inteira, e do chão subiam cogumelos de fumo espesso que eram a raiva das acácias violentadas, que eram a fúria dos embondeiros a desmoronar-se, e ondas de choque faziam ranger as velhas carcaças dos aviões que se retiravam à pressa. Voltou aos alertas dia e noite, para aliviar os quartéis flagelados a toda a hora pela artilharia do inimigo, pelos morteiros do inimigo, pelos foguetões do inimigo, abria-se um buraco na barriga dos velhos dakotas e semeavam-se bombas à mão pela noite africana, lá em baixo acendiam-se fiadas de pequenos fogachos brilhantes, fogos-fátuos de fim do mundo, espécie de rosários sacrílegos, berravam os capitães da tropa ao rádioo seu desespero indefeso, enquanto desencravavam a espingarda automática em subterrâneos lúgubres, cobertos de sacos de areia e troncos de palmeira apodrecidos.

Um dia voltou a Lisboa, já a revolução tinha tomado o freio nos dentes. Percorria a cidade uma euforia que só acontece um vez na vida, porque não há energia que a viva duas vezes, e inundava praças e avenidas uma grande catarse colectiva, que floria em risos e rosas vermelhas. Ele há males que vêm por bem, vale a pena todo o sofrimento do mundo para ver um grumete de marinha silenciar um general já com lugar cativo na história, é da voz e da vida de homens que aqui se trata, meu general, daquilo que eles nunca tiveram, e essa táctica não vem nos seus livros, meu general, não são deste céu as suas estrelas cadentes. Há males que vêm por bem, mas também já se tem visto o contrário, muitas casacas tornaram-se subitamente incómodas e virá-las é uma urgência, de repente a longa noite de cinquenta anos fora apenas uma fatalidade indesejada, pomos um cravo ao peito enquanto as pratas passam a fronteira, e os quadros do Botelho, e as jóias de família, quero que a menina se ponha a salvo em Madrid com as crianças, sabe lá o que estes comunistas são capazes de fazer. Os reorganizadores do proletariado pintavam nas paredes grandes bandeiras vermelhas e operários imponentes, cada mural era um decreto-lei, e uma tarde no Rossio viu-se Gaspar misturado na multidão que gritava nem mais um soldado para as colónias. E lá foi,da Baixa a Sâo Bento, parecia aquilo um rio Jordão onde Gaspar tomou baptismo, ele que vinha de férias já não voltou à Guiné. (cont.)

terça-feira, 27 de fevereiro de 2024

As Aves 9

Gaspar confundiu aqui osalhos com os bugalhos, o seu desespero interior não lhe deixou ver mais um cão à chuva em cada transeunte, quando é disso que em verdade se trata, perdoemos-lhe nós a metonímia aflita, estamos apesar de tudo mais folgados, nós fazemos pela vidinha em cada dia, ele não pode. Talvez Gaspar sinta apenas inveja de não poder, isso não é muito claro, mas a verdade é que meteu dó a si próprio, tinham-no atraído assim com falas patrióticas para o violarem atrás do capim, atrás de todas as roças de café que existiam no planalto, atrás de todas as cantinas do mato que trocavam milho e feijão por reles chitas coloridas, atrás das mesas de todos os bares nocturnos da ilha de Luanda, onde inglesas de Moscavide cavalgavam um estropiado can-can, antes de se meterem às estradas de Malange e Salvador do Congo, tinham-no atraído para o violarem atrás da pesporrência vil de todos os colonos que cheiravam a suor e pediam armas, que desprezavam a tropa e exigiam armas para massacrar os pretos todos e resolver a guerra num ai, tinham-no violado atrás dopalanque azul do 10 de Junho, à beira do Tejo que marulhava indiferente a tudo, à beira de viúvas também elas violadas pela cicatriz gelada das cruzes de guerra póstumas ao peito.

O exército é o espelho da nação, e isto é o que se lia nos panfletos colados a esmo nas ruas da cidade, virava-se uma esquina e logo tropeçavam os olhos naqueles rectângulos de cor envergonhada e baça, não tão baixos que pudesse mão herética meter-lhes a unha e silenciá-los, nem tão altos que risco houvesse de perder-se na atmosfera da tarde a jaculatória patriótica, o exército português é tão bom comoos melhores. Muito melhor que os melhores, diremos nós para que a verdade se saiba, pois convém a César dar o que de César é, e para o provar vamos ali à foz do Massanza, um destacamento avançado onde um pelotão de atiradores vai defendendo a soberania, do outro lado do rio alastra na paisagem , entre arames farpados, um sanzala de realojados, que estendem ao sol as misérias da lepra. Um dia os rústicos soldados saíram dos abrigos e deram-se a construir uma pista de aterragem, tinham-lhes prometido uma avioneta que poisaria ali uma vez por quinzena, não há nada melhor para romper o isolamento, para resistir à loucura ou receber o correio que houver, sempre se tem a ilusão duma ligação ao mundo. À custa de tempo e de suor aplainaram à mão esta faixa com dez metros de largo, esquartejaram umas dúzias de mangueiras bravas que arrastaram para as bermas, a pista começava logo à beira do rio e alongava-se até tropeçar ao fundo na colina, o resto do milagre haviam de fazê-lo os aviadores. E um deles o terá feito, uma vez sem exemplo, aterrou um dia a passarola mas só saiu daqui deixando atrás a carga toda e metade da gasolina, que a pista foi celebrada com cerveja mas não ia além de sessenta metros mal medidos, tudo quanto podemos fazer é passar em voo rasante e largar os sacos de biscoitos e massa, é largar as latas da marmelada e do atum, é largar os sacos do chouriço e da carne,se a houver. E foi a partir daí que toda a canzoada da sanzala passou a regular a vida por um estranho calendário, mal se ouve ao longe o roncar dum avião e logo os bichos se põem a atravessar o rio, espadamando na água as patas frenéticas. Cada um escolhe o deu terreno ao longo da pista, e é vê-los a disputar aos irados soldados os restos dalgum saco rebentado, lá vai este a fugir para o mato com um par de chouriços nos dentes, aquele abocanhou um pão, a princípio ainda se ouviam tiros e rajadas a afugentar os bichos, agora já nem isso, toda a gente afinal concluiu que a vida cista a todos, que todos ficam parecidos no retrato, o exército português é melhor do que os melhores. (cont.)

domingo, 18 de fevereiro de 2024

As Aves 8

Está ali encostado na cama, neste abandono lasso de membros, há muito que escolheu campo mas tem agora as suas hesitações, além de campo escolhido tinha o práprio Cristo o seu fadário, com mais adequada linguagem falaríamos dum destino, se o profeta não terá mesmo referido uma imposição categórica do pai, e por aqui se vê que não são de agora estes desconcertos de gerações, e apesar disso tudo o mesmo Cristo hesitou na hora da verdade, se for possível, pai, deixa que passe por mim este cálice sem que eu o beba. Gaspar hesita, e não é de fel o copo que tem que recusar, difícil não será isso para deuses mas ele é um simples mortal, o que teme é o risco, a insegurança, ai o aconchego tranquilo desta casa de terceiro andar. Gaspar hesita, a dar-nos tempo de contarmos aqui as contraditórias forças que o reclamam, há coisas que mais tempo levam a contar do que o fugaz relance em que sucedem, qualquer um sabe disso.

Vinha Gastar descendo a avenida João XXI, para o Campo Pequeno, à procura duma pensão, era ainda um menino dentro da sua farda de aviador. Trazia nos olhos aflitos o fascínio das paisagens de Angola, e as saudades dos amigos que tinha visto morrer, e as imagens absurdas que lhe povoavam os pesadelos e o aterravam, depois daquele encontro assim de cara aberta com a morte, num desastre aparatoso. Tinham-no mandado, ainda menino, defender a pátria. E ele acreditava que havia pátria, e que esta era uma e a mesma grande mãe de todos, e que devia defender-se, lá onde fosse preciso. E foi, e lá pôs a sua força generosa nas mãos dos que mandavam na pátria, e agora estava ali, regressado à rectaguarda para recuperação no hospital, como se rectaguarda houvesse, e trazia a alma cheia de rasgões e de medos, a precisar dum bálsamo, a precisar duma atenção da pátria, a precisar de um seu gesto suave no cabelo, como fazem as mães. E ao descer a avenida João XXI, desamparado que nem um cão à chuva, à procura duma pensão, de Gaspar falamos, pois claro, teve a revelação dolorosa da inutilidade de tudo. Poisou no chão o pequeno saco de viagem e encostou-se a uma ombreira alta. A multidão passava, era Setembro, e havia formas bonitas de mulheres expostas nos trajes exíguos, e havia um desdém ocupado nos homens que passavam engravatados, aos pares, com largos gestos de mão, a discutir importantíssimos interesses, e havia indiferença nos olhares que às vezes desciam até ele, sentado assim sem forças no degrau de pedra dum patamar, se dentre eles algum era olhar de poeta chegava-lhe embrulhado num cetim de fastio, ou numa grande tristeza, como se fosse um lamento, e havia um desprezo altivo nos lábios vermelhos das matronas que lá iam, agitando braceletes douradas. Havia olhos tristes e risadas escancaradas, a vida passava ao seu lado, como um rio, indiferente ao seu naufrágio interior, cega e surda à hecatombe da juventude que apodrecia lentamente nos planaltos africanos, que endoidecia lentamente nos planaltos africanos, afinal é mentira tudo quanto diz a propaganda oficial,e eu prefiro rosas, meu amor, à Pátria, afinal está pátria é uma madrasta galdéria que tem vergonha do abcesso africano, que prefere desconhecer o abcesso africano, que esquece, para não sentir, a dor que todos os abcessos provocam.

quinta-feira, 8 de fevereiro de 2024

As Aves 7

Porém, não é de passeio que aqui se trata, isso mesmo afiançam os fracos cavalos desta carruagem que por Castela nocturna vai avançando, esgotados e raivosos já desta maratona, e melhor do que eles o poderia fazer Gasparse nos dissesse em que pensa, não foi um convite para passear que o acordou naquela manhã, haverá três meses. Eram sete horas, Gaspar dormia um sono pesado, os dias eram frenéticos como só sabe quem os viveu e ainda não se esqueceu deles, e as noites pequenas para leituras, dos clássicos para aprender de cor a revolução, e dos jornais da tarde para saber o que a revolução fazia acontecer, e que descaminhos tomava. Andavam loucos os cavalos da revolução, raivosos e esgotados como estes que agora nos transportam, mas menos dóceis e previsíveis, e a voz que apareceu ao telefone e assim arrancou Gaspar ao sono dizia justamente que havia estranhos cavalos à solta nos verdes prados da revolução, o melhor era pôr-se em campo. A mesma voz, a voz que apareceu ao telefone era a mesma voz que hoje de manhã lhe entregou o passaporte falso, quando passou a chamar-se Gaspar, e o seu tom era ainda mais seguro e voluntarioso do que hoje foi, quase triunfalista, se não era apenas exercício táctico de quem faz das fraquezas forças, ou ligeireza de quem mete os cães à fieita e na sombra se fica.

Assim mergulhado na penumbra matutina do quarto ficou Gaspar estremunhado e hesitante, já sabemos que o nome ainda não era este, a história já estava acontecendo mas ainda não tinha passado dos começos, chamemos-lhe por isso Gaspar, modo de falar para melhor nos entendermos. Estes olhos fechados têm pesadas olheiras de cansaço, e a cabeça que assim repousa encostada à cabeceira da cama parece, por momentos, agir por conta própria e buscar uma decisão. Gaspar sentiu o corpo da mulher abandonado ao lado, que mais verdes prados haverá no mundo do que estas tépidas campinas onde um vento enlouquecedor sopra sempre, ou do que estas ondulações a esconder na paisagem do corpo abismos de fogo e mel a que ele nunca soube resistir.

Na rua crescia a agitação matutina, alguém subiu e voltou a descer as escadas de madeira do terceiro andar, talvez o padeiro, a mulher-a-dias não teria ido embora sem bater, e ainda é cedo, que disparate, para ela chegar dos lados das barracas de Chelas, é assim, uns a comer as carnes da vida e para outros apenas a sobrarem os ossos, se não haverá mais justas formas de administrar os trabalhos e as incomodidades do mundo, descansem estes aqui no abençoado choco dos lençóis que outros lhes virão trazer à mesa os pãezinhos de leite para o café, as carcaças de farinha ainda assim cheirosa e quente, basta pôr-lhes dentro a manteiga que por ela mesma se derrete, e para quê pensar no trabalho que deu a produzir se por milagre aqui apareceu, com tão fraco merecimento nosso e tão a tempo de calar o apetite matinal que esta suada e gemida noite provocou. É o caso destes dois insignificante exemplo, que assim se toma por estar aqui à mão, são as pequenas coisas que mais claro significado têm e mais profundo sulco nos deixam na consciência, calhando um homem tropeçar nela.

É o caso de Gaspar, insistamos no indevido nome, para bem ou para mal fruto da sua pessoal história, ou de certo currículo de vida, tem a revolução destes surpreendentes caprichos, como seja empurrar cada um até esta encruzilhada e forçá-lo a escolher um dos caminhos, agora diz lá de que ldo ficas tu nesta batalha que aqui se trava, a que vozes juntas a tua voz para gritar, porque a revolução é um grito que deixou de poder calar-se, se nunca tiveste direito a gritar aproveita agora, muitos nem assim se decidem, apura-se o ouvido e nada, nem preta nem branca, preferem ver primeiro em que param as modas, como quem escolhe cavalo só depois da chegada à meta, para terem a certeza de não perder a aposta que sobre a mesa está. Não é este o caso de Gaspar, que já escolheu campo, e acredita ainda que a vida se rege por princípios, e que tem ideais, e que está na hora de lutar por uns e por outros. (Cont.)

quinta-feira, 1 de fevereiro de 2024

As Aves 6

Nestas coisas, o melhor é ter as despedidas sempre feitas, e este esclarecimento veio do condutor da minúscula viatura, parece impossível que tal estatura possa meter as pernas no espaço dos pedais, este consegue-o e mantém um ar seguro e decidido, mais tranquilos vamos nós nas mãos deste são cristóvão, o qual acrescenta, despedidas feitas e nada de pessoal, o que é pessoal tolhe gestos e decisões, retira disponibilidade para uma luta geral em que cada um de nós não toma mais que uma ínfima parte.

Cada um de nós pouco vale, o que conta é a vitória final e a confiança que havemos de ter nos amanhãs que cantam, onde é que eu já ouvi isto, perguntou a si mesmo Gaspar, o queixo apoiado na palma da mão e os olhos correndo a paisagem castelhana através do vidro minúsculo. O luar desenha rápidos vultos de ainheiras torturadas que trotam sem descanso, ao longe perpassam luzes de alguma finca isolada, ou serão apenas cristais duma lágrima que da taça deste peito transbordou.

Mas um homem não é de pau, com perdão do lugar-comum e de rasteiras insinuações, e muito poucas são as têmperas de puro aço. Gaspar alheou-se da circunstância, perdido nos seus pensamentos ou nos descampados infindos de Castela, raras aldeias desfilam a tempos no silêncio geral do mundo adormecido, o resto é estrada aberta sem encruzilhadas nem escolhas, este é um comboio que já não pára, não há apeadeiro para quemnele montou.

A lua deslocou-se no céu, esconde-se agora sobre o tejadilho do carro, e Gaspar pensa que a esta hora já não bate o luar nas janelas do terceiro andar do Areeiro, se nalguma delas haverá ainda luz, se estarão já dormindo os filhos, ou se uma voz está justamente deslindando o final da história dos dois meninos que foram passear ao monte e se perderam. Que bosque é este, em que se perderam estes dois que aqui vão, e se esta história acabará, como a outra, em bem, no meio de abraços gerais e grande júbilo familiar, rico filho da minha alma, que julguei não tornar a ver-te. A outra é uma história de inventar, para adormecer meninos, há uma luzinha ao longe, no monte, e acaba por saber-se que, afinal, é a janela da casa dos ladrões, mas isso não passa duma peripécia que introduz o mal num jogo em que o bem acaba sempre por vencer. (cont.) 

sexta-feira, 26 de janeiro de 2024

As Aves 5

Gaspar, que é o fumador, apaga cuidadosamente o cigarro, enterra a prisca no chão, vagueia no céu a lua, de barro da Andaluzia, quanto mais andas na rua, mais tempo ficas p´ra tia, isto ouviríamos nós se ele traduzisse em linguagem audível o que no pensamento lhe vai, há momentos assim, e gente desta, com olhos que vêem para além das coisas e do que nelas está, olha a novidade, o que lá está qualquer um pode ver, cego não sendo, uma lua, um céu fresco, três homens, pedras e moitas. O compasso é de espera e de abandono, já foi dito que a lua lá vai banhando o céu, do que se passa na alma deste homem não tivemos nós nenhuma confidência, fiquemo-nos por tais manifestações líricas, acaso espelharão elas o que por lá vai, tempestades ou ânsias, dúvidas ou medos, inseguranças quanto baste, e paixões as que houver.

A lua, primeiríssimo astro feminino, é aqui motivo principal. É de barro andaluz, a cor é quente e a matéria mais que todas terrena e primordial, se dela o Criador lançou mão para fabricar a matriz de todos nós. O campo de sugestões está demarcado, e a quem não reconhecer o peso da Andaluzia nestes casos, baste-lhe o contraste de uma lua, por exemplo, finlandesa. Além disso esta lua vagueia, e verbos há que são fatais quando aparecem, haverá contradição neste homem, um desejar e um temer, algum querer e não alcançar, quem sabe até se algum pleito em vias de perder-se, ou então esta mais antiga e mais incerta guerra do mundo, entre homem e mulher, se não for antes a guerra de um homem consigo mesmo. Tudo são congeminações nossas, mas a censura aí fica, tão claramente expressa, a quem se dirigirá ela. E, a propósito, notemos nós este semblante que se carregou, a fachada que um ricto endureceu, este olhar anuviado por impalpável brisa, acaso um pestanejar da lua fatigada, ou fiapo de nuvem que passou.

À espera deste pestanejar de faróis estava o mestre passador, cujo vamos! decidido cortou divagações ou o mais que fossem, conflitos ou enleios. O carro passou devagar na carreteira de macadame, os faróis abriram dois leques sobre o nada da paisagem nocturna, se alguma coisa era de mencionar não a notámos, que estes três já lá vão em marcha acelerada, o objectivo está ali à vista naquela berma ao fundo, este chão foi lavrado, a terra é mole, os pés enterram-se. Vou ali já venho, deu o carrouma volta no cimo daquele outeiro, ou porque o espaço é mais amplo, ou por hábito de outras repetidas viagens, não nos dizem as rodas de borracha se reconhecem este piso, nem os olhos de luz sejá iluminaram este chão, entrem rápido, não convém parar aqui muito tempo. Isto recomendou ainda o mestre,  passador, e de facto entre quedar-se o carro, apear-se esta mulher e alçar o banco dianteiro, abrindo caminho para os lugares traseiros, não decorreu um ai. Os gestos são precisos e eficazes, parecem estudadas partes de um mais amplo e desconhecido conjunto, quem é este homem novo que nos conduz, ou esta jovem mulher que o acompanha, o nosso caminheiro que já desapareceu na noite, quem será, se nos tornaremos a ver, até nos esquecemos de fazer as despedidas. (cont.)