sábado, 6 de abril de 2024

As Aves 2-15

Todos têm as pernas entorpecidas, e Gaspar percorre uns metros no passeio para aquecer os joelhos que protestam da prolongada imobilidade, pior está o companheiro que sofre de mazelas da coluna. A mulher é a mais animada e louçã, efeito prodigioso do prolongado sono ou milagres da juventude, a bem dizer todos aqui são jovens, o bastante para não podermos opinar que alguém seja velho, há nestas palavras uma irrespondível relatividade que havemos de aceitar, e mais facilmente se entendermos que esta e todas as revoluções se alimentam de sangue novo, é dos verdes sonhos que vivem, a bem dizer todos aqui são jovens, duas vezes fica dito, e esta mulher mais que todos, por isso vai assim viçosa e guapa, não sabemos o que seria deste mundo sem as mulheres.

João já lá vai em busca dum estanco restaurador, parece este conjunto uma romaria de paisanos perdidos na cidade, faltará aqui o poeta a olhar as fachadas como quem busca o sete-estrelo, tão difícil de ver neste estranho céu, ainda bem que afinal não demorou a encontrar. O comedor nada tem de singular e próprio, que este mundo é todo ele uma redonda uniformidade, um balcão à direita, a parede rendada de garrafas antigas cobertas de pó, ao fundo uma porta que dá para o reservado, e é nele que estes viajantes procuram algum recato e discrição, chuletas de cerdo para todos e uma botelha de sidra, produto regional garantizado para ustedes, afinal não ra desagradável, João paga a conta, o caminho espera por nós.

Antes que se partam vai este companheiro telefonar, Gaspar supõe que para Lisboa, mas não sabe se de razões do coração ou de outras mais conspirativas se trata, ele não poderia explicar porquê mas não lhe agrada o gesto, que toma por leviano, se por ele poderemos nós avaliar e perceber muitas inexplicadas coisas, acaso será apenas injustificado temor seu, ou sua ingénua intolerância. E enquanto espera perdeu-se-lhe na rua o olhar, triste, se não inseguro ou aflito, há esta onda de melancolia a desabar-lhe sobre o coração, este niagara a dissolver-lhe a força dos membros, simples fruto da nostálgica hora ou mais completo diagnóstico Gaspar não o sabe ao certo, se acaso terá tudo isto algum sentido, está um homem a meio dum rio sem poldras para trás nem para a frente, a meio dum rio a que a enxurrada levou as margens, subitamente engrossou a torrente e engoliu-as, o que fazia aqui falta agora era abrir-se este mar vermelho e passar, por seu pé enxuto, o povo eleito, não seria esta a vez primeira, mas o mundo ainda não é igual para todos. (cont.)