sábado, 24 de agosto de 2024

As Aves 2-22

E assim perceberemos nós melhor porque sempre foi este enjeitado povo, mar em fora, primeiro de cruz alçada e depois mesmo sem ela, encontrar a felicidade entre os cafres de qualquer sertão, não  há entre nós e eles diferenças de maior, fazemos uns e outros os filhos no mesmíssimo lugar, estendendo no chão as mesmas pretas nós e eles, é uma santa fraternidade multirracial, assim ponham olhos em nós os altivos saxões da Europa, e no exemplo da nossa obra civilizadora. E, em diferenças havendo, chamamos o sipaio, que a nosso gosto porá as coisas nos lugares, quanto ao resto alguém decidirá, para que há-de o povo saber mais do que assinar o nome e contar os dias da semana, que são os de trabalho, que melhor vida se resume a tão simples contabilidade.

Lá foi Gaspar levado para o seminário, assim se dignem os senhores padres velar por ele, a propina é insignificante. Saiu de casa eram três da manhã, atravessou os descampados da Atalaia em cima da jumenta e gelaram-lhe as mãos a segurar a pequena mala onde guardava o bragal marcado a tinta hesitante. A mãe caminhava atrás, e Gaspar sentia-lhe o ranger das passadas no saibro do carreiro estreito, misturado ao trotar da burra, razões não faltariam a esta fuga para o Egipto se Egipto aqui houvesse, e nos acompanhasse um carpinteiro, José, podendo ser. Às seis horas da manhã chegaram à estrada real, o nosso Egipto ainda é longe e esta mãe vai desistir da fuga, vai deixar partir o filho e regressar a casa sozinha, atravessando o que resta da noite, o que sente só ela o sabe, e Gaspar apanhou a camioneta do Côa, que o deixou, contra sua vontade, na estação do comboio. Já chegámos ao casarão do seminário, com pouco mais nos dava o dia inteiro para chegarmos ao tal Egipto, e sem nos darmos conta já são horas de vésperas, e mal fizemos a cama e nos deitámos nela já tocou a sineta a chamar às matinas, e agora seguimos na forma para o estudo da manhã e já sentimos fome, faltam-nos cinco aulas para o almoço e não podemos distrair-nos, que o olho de Deus nos observa, se não for o do padre prefeito que vê muito melhor, e tem a mão pesada se nos deixamos atrasar. E amanhã virão três dias de retiro espiritual e purificação da alma, e durante eles inteiros manteremos silêncio, e vaguearemos na foma pelos caminhos da quinta, mirando de soslaio as cerejas nas árvores, vermelhas como lábios de eva, nós, simples instrumentos inscientes da vontade e dos desígnios de Deus, mesquinhos pedaços da argila em que ele próprio nos moldou e a sua mão cobre, se não é antes a deste padre prefeito que tão estranhamente nos toca. Um dia destes vamos nós descobrir, apanhados entre o rigor das leis morais que ingenuamente levamos à letra, e a frágil condição deste terreno barro de que nos fizeram, um dia destes, antes de percebermos a imensa hipocrisia que há nos gestos e nas palavras, vamos nós descobrir, não sem angústia, que Deus é um tirano, sem nos darmos conta de que não é ele que veste a sotaina e o solidéu. E havemos de levar a correr a nossa aflição aos ouvidos atentos do director espiritual, nós, pobres instrumentos da astúcia de satanás, aterrorizados com a heresia que se nos apoderou da razão, cerramos os dentes e dizemos a nós próprios que não é verdade e a heresia volta sempre, Deus é um tirano, Deus é um tirano, Deus é um tirano. Após o que, passados três meses, na exaltação da partida para férias, quando os nossos olhos brilharem de alegria porque já se revêem nos prados verdes da aldeia, havemos de receber, por interposta boca do vice-reitor, a notícia de que Deus se quer despedir de nós e nos dá carta branca, porque muitos são chamados, mas escassos serão os escolhidos. (Cont.)