segunda-feira, 26 de agosto de 2024

As Aves 2-23

Deus, porém, é quem escolhe, não nos cause admiração que reserve para si a melhor parte. E nem sempre avisa com  antecedência, como neste caso em que João teve que sair da estrada para satisfazer necessidades do corpo. Este parador é uma ilha de luz providencial na escura noite castelhana, se não é já leonesa, estão ali as casas brancas rodeadas de holofotes, dois carros dormem alheados da friagem nocturna, acaso desistiram da travessia deste deserto. Já os outros abrem cá fora o peito à frescura da noite, quando Gaspar emerge, aturdido, e pergunta onde estão. Um grupo de espanhóis ceia tardia e ruidosamente, ficamos sem saber se há motivos para a casual celebração ou se não é antes de inveterado costume que se trata, olha uma pessoa estes cristão e fica na dúvida se tanta exuberância é assomo doentio de grandeza, como já se tem dito, ou natural manifestação de sanidade de espírito, qualquer paisano é um duque d'alba em pelota, a quem o sol pede licença para se levantar. Há momentos em que um homem tem a alma mais quebradiça, e este será o caso, mas Gaspar sente perante estes castelhanos uma tal estranheza e uma fragilidade que nehum outro estrangeiro lhe faz sentir, parece olharem para nós como se não existíssemos. Afinal tivemos uns e outros fadário de andarilhos por esse incógnito mundo, sofremos uns e outros a sotaina e o queimadoiro até ao enjoo, um pouco maise meros inquisidores seríamos nós todos, se o não seremos já, de fé puríssima e purificada, suportámos ambos déspotas e tiranetes mais que a conta, com estamos lembrados. Vivemos aqui paredes meias há uma vida inteira, parecia isto uma casa de família e não o é, acaso o ponto estará em saber como vivemos essa vida, ou como nos foi contado o que em séculos temos feito uns aos outros, se não será já tempo de esquecermos tudo isso, a vida dirá, em todo o caso, a última palavra.

Gaspar pede um café, não que tenha algo a esperar desta zurrapa castelhana, há lá café no mundo como o português, ao menos nós acreditamos nisso e tanto nos basta. Mas quer defender-se do sono que vem reivindicando os seus direitos, os outros ficam-se por um aliviar de bexiga e uma garrafa de água sem gosto. Já voltaram à estrada, já a noite os engoliu, talvez o sol de amanhã no-los devolva sãos e escorreitos, caso nenhum castelhano venha a proibi-lo de se levantar.