Esperaram por ele em sobressalto os companheiros, que ao longe o tinham visto desaparecer atrás da colina redonda. Sabiam ao que andava, o suficiente para lhe entenderem as manobras, deram conta de como o zumbir do motor se evaporara da infinita paisagem, e aguardaram que voltasse a aparecer do outro lado do monte. Mas ele já não veio palo seu próprio pé, e ao fim de várias horas de busca tropeçaram nele a esgrimir contra o capim altíssimo, enterrado até às partes nas lodagens dum charco onde as pacaças tomavam banhos de frescura, a cabeça disforme alagada no sangue que lhe espirrava das pálpebras em chaga, cego e alucinado, em busca dum caminho improvável.
Velaram-no toda a tarde,num estranho silêncio dolorido, atentos ao murmúrio que às vezes o agitava, um de cada vez metendo-lhe na mão as mãos que ele não desistia de agarrar, o que será que segurava. O que viam por fora não lhes deixava campo de esperança, mal sabiam eles que Gaspar não tinha partido sequer um dedo mínimo, das convulsões que lhe tomavam o peito saíam apenas vómitos de sangue, mas os próprios olhos estavam intactos, outro era o lugar das mais fundas lesões, e esse não estava à mostra. Milagre era já ele estar ali estendido no chão da viatura, ninguém sai com vida dos destroços que assim encontraram espalhados no capim, à beira do paul.
Porém este saiu, e já recuperou a razão à entrada do hospital, estendido na maca baixa, e já ouve este padre capelão a lembrar-lhe que também Deus o tem por seu filho, e que deve estar pronto a acatar o seu intangível desígnio, somos só verdes vimes que um vento verga, feita seja a vossa vontade, a minha não. Gaspar vê claramente o significado desta aparição que o fragiliza, que assim franqueia brechas na sua íntima segurança, depois da euforia animal de se descobrir vivo. Inunda-o este amargo sabor a fraude, sente-se violado por dentro, vocifera contra generais e guerras e pátrias, a sua e as restantes, mais que nunca se aferra às palavras que corriam entre os aviadores, lá no norte, se chegarmos vivos ao hospital os doutores não nos deixam morrer, na verdade o que ali lhe valeu foi perder outra vez o sentido, foi ter baixado o pano, de novo congelado o tino e a razão. (Cont.)