segunda-feira, 2 de dezembro de 2024

As Aves 4-1

João bate á porta do quarto num gesto impaciente, é tempo de partir e Gaspar está ferrado ainda no sono da primeira manhã. Será este o melhor remedeio quando a noite assim se tresmalhou, consumida em ânsias e suores, mas isso não o sabe João, nem são contas do seu rosário. O que ele temé que atravessar a Espanha com estes dois viajantes e pô-los a recato, e ainda falta Burgos, e Miranda que vem tão longe, e mais ainda Vitória, e Tolosa, e Irun lá para o fim da tarde, que estes dias são pequenos, bem fizémos nós em esticar assim a etapa de ontem. O carro minúsculo respondeu de imediato ao aceno da chave, soube-lhe bem o repouso e não se queixa de pesadelos nocturnos, será porque nunca foi à guerra.

No meio da geral modorra matutina Gaspar vai triste, à medida que abandonam a cidade. Não tem aqui nada de seu e no entanto olha as ruas e as fachadas, olha este caminhante e aquela árvore como quem se despede. E do fundo da memória sai-lhe uma lembrança antiga, de quando ia apanhar a camioneta para o seminário, há quanto tempo isso vai e a emoção de hoje é a mesma, passamos a vida a repetir-nos. A velha Dodge amarela, antiga como a primeira das irmãs que saiu das forjas de Detroit, o inchado nariz a roncar estrondos jurássicos e o tejadilho a abarrotar de fardos e bagagens, lá ia bordejando prados e colinas pela estrada do Côa, e a Gaspar ficavam-lhe os olhos presos nas paredes das hortas, nas giestas floridas se era Abril, nos castanheiros nus, ficava-lhe uma dor agarrada às imagens da mãe girando na cozinha, às picardias dos irmãos, às cavalgadas dos cães que lhe vinham sempre à mão, quem não sabe o que isto é poderá ver, por estas lágrimas, quanto custa perder a liberdade. E agora parece que finalmente o rodar do tempo lhe vai abrindo os olhos para a realidade que está vivendo, lhe vai despertando a consciência para as rupturas a que deixou a alma exposta, e que apenas aguardam o momento de começar a sangrar. Sente o peso de quanto deixou para trás, bom ou mau é o que lhe fazia a rotineira e sossegada vida. São isto ingenuidades a que teremos que atender, o mundo seria outro se todos tivéssemos têmpera de heróis, o que será ele isso, ainda não é desta vez que lançaremos nós a primeira pedra. (Cont.)