quinta-feira, 5 de dezembro de 2024

As Aves 4-2

Há uns ameaços de chuva na paisagem, este céu está fusco e pardacento, dava jeito aqui um sol que viesse forçar um sorriso a estes viajantes, tão sorumbáticos se mostram, basta às vezes um pequeno nada para que o mundo deixe de ser assim a preto e branco. O trânsito é escasso a esta hora matutina, e o andamento o conveniente aos mesquinhos cavalos que nos puxam, assim não venha a chuva exigir-nos cuidados acrescidos e perdas de rendimento na empreitada, ainda bem que não estamos nos meses de verão, há muito já se vai dizendo que esta é a estrada da morte dos portugueses. Passam por aqui aos milhares, e não há fiferença entre eles e as aves de arribação, que umas e outras se deslocam por idêntica bússola, encontrar um recanto assinalado na dobra duma paisagem, escolher nele uma pedra para recostar a cabeça, plantar aí as raízes da alma. É este o seu carreiro de formigas quando chega o verão, em filas que vão até ao horizonte, queixam-se as viaturas por serem às vezes velhas em demasia, e rangem ao excessivo peso, e aquecem demais ao masculino sol ibérico, e mais se queixam as crianças da sede e da falta de espaço, e do ar azedo que ferve, saturado de humores, as mulheres iam agora lamentar-se do destino que tanto demora a chegar mas falece-lhes a oportunidade, sempre a última na ordem das prioridades, que agora é a vez de se queixar este homem condutor, do suor e do cansaço, há oitocentos quilómetros que não pára, e por isso lhe descaíram as pálpebras, ou ele as deixou velar, o carro foi perdendo a direcção adequada, tão lentamente que ninguém deu por isso, tão imperceptivelmente que nenhum protesto se ouviu, entrou no desnível da berma e a roda sobrecarregada não conseguiu voltar à via, não era duma trabalheira assim que estavam precisadas estas ambulâncias da guarda civil, a galopar aos gritos na paisagem.

Mas a prometida chuva não passou dum aceno, e este não é o tempo das vacanças e seus afogadilhos. A estrada é um tapete que à nossa frente se abre, riscando ao meio a planura, e por ela deixa Gaspar discorrer a vista melancólica, esta meseta castelhana é uma terra vencida, geologicamente exausta e exaurida. O tempo suspendeu um dia as convulsões de milhões de anos que nala se adivinham e deixou este mar chão domesticado, onde a mesma ondulação estática se reproduz indefinidamente, e onde nada nos surpreende o olhar. Ficou esta paisagem torturada, que estranhas elevações interrompem a espaços, é um cenário de papel donde as próprias árvores desertaram. A custo se arrancam do chão os povoados que raramente surgem, e tudo tem a mesma cor pardacenta da terra, os telhados, os muros das casas, as janelas.(Cont.)