domingo, 2 de junho de 2024

As Aves 2-19

Que filhos são cadilhos toda a gente o sabe. Lá vêm estes galrejando risos pela rampa acima, senão gritos e choros, ao menos estes não pedem sangue, como as espingardas, singela candura a desta infância que tão bem aproveita as folgas do estado de sítio, parece isto uma geral gazeta na cidade, ninguém está onde devia, noutra ocasião ficaria Gaspar encantado com a sociedade, mas não assim, ó mãe, está ali um homem sozinho, de cara triste, sentado ao cimo do pinhal. O rebanho dos garotos está cada vez mais perto, Gaspar reconstrói-lhes pelas vozes o volteio das brincadeiras, perde-se a imaginar-lhes caras e estaturas, cabelos e cores de bibes, o que vale é este tufo rasteiro de arbustos que ali vai sobrevivendo, não é Gaspar um coelho bravo, mas por uma vez qualquer um pode sê-lo.

Estes índios vieram brincando até ao cimo do pinhal, e a mais não se aventuraram. Gaspar jaz, imóvel, de costas no chão frio, como um rei de pedra que se cobriu de ramos de oliveira, parece contraditória a figura e nãoo será tanto assim, a vida tem destas ironias. Em todo o caso, ele próprio escolheu o seu papel nesta história, não tem que se queixar da pele que vestiu, mais valera ter-me ido embora, caraças, saía por aí tranquilamente e nem os putos davam por mim, se algum sacana aqui mete o focinho curioso ou me desenterra a pistola, a tarde é longa e tem que passar, tende paciência, Senhor, chamai as criancinhas, fazei-as ir a vós, já é chegado o tempo. É fácil rirmos nós desta comédia que aqui se representa, e tantos são os actos e peripécias quanto é infindável o poder de improviso destes figurantes, o pano só baixou quando um aguaceiro veio correndo da calçada do Lumiar, e obrigou a trupe a debandar desordenadamente encosta abaixo.

Gaspar libert-se enfim da camuflagem, tem a véstia molhada e gelaram-lhe os pés da imobilidade, agora só lhes resta caminhar por essas ruas até que a noite chegue. Lá vai ao longo do alto muro do cemitério velho, se modos há de um vivo passar despercebido é misturar-se com os mortos, outra vez parecerá ironia mas não é, que para alguma coisa haverá de servir o rio do esquecimento que estes já cruzaram. Está entreaberto o pesado portão de ferro forjado e Gaspar respira enfim descontraído, não é este um lugar de brincadeiras infantis e os mortos ficaram indiferentes ao estado de sítio, para eles nada se passou, para eles é já a vida toda um recolher obrigatório.

Há aqui meia dúzia de ciprestes que resistem à febre dos jazigos e das lápides funerárias, e, lá ao fundo, uns restos de sebe de buxo sobrevivem à praga das sepulturas perpétuas. Tudo o mais é um sufoco, uma claustrofobia para estes defuntos, quando  morreres esvoaçarás invisível entre sombras impotentes, sem que haja de ti memória no futuro, não assim para estes vivos, que todos querem aceder à imortalidade, todos se julgam dignos de figurar nestes mapas do tempo. Os antigos, no tempo em que as tardes eram sossegadas e o mundo era ainda uma coisa compreensível, esses tinham, ao morrer, o bom senso de se empilhar na propriedade horizontal de um jazigo de família, se o havia, mesmo os que eram ricos e se julgavam famosos poupavam nestes loteamentos. Hoje, qualquer um reclama um lote próprio, vivenda exclusiva e jardim anexo, num imenso desperdício de espaço, onde sóos caracóis pastam as ervas e bolçam o nácar dos humores. Por este andar, amanhã os cemitérios não comportarão mais sepulturas perpétuas, estas perversões da propriedade, cujos donos deixaram de existir. E elas hão-de saltar para as azinhagas circundantes, alinhar-se-ão à beira dos caminhos, ocuparãoo lugar das hortas e searas, misturar-se-ão com as perpétuas campas dos gatos e dos cães que também sonharam com a imortalidade, hão-de alcançar a orla das praias, os mortos que nunca viram o mar vão assustar-se com as marés vivas de Setembro, e acabarão,quem sabe, por ter que se espalhar pelo fundo dos oceanos. E um dia, quando todo o vasto mundo or um campo santo inútil e pejado de fantasmas ocos, os homens descobrirão que apenas a indiferença das pedras tumulares contempla a sua maçadora imortalidade. (Cont.)