sábado, 1 de junho de 2024

As Aves 2-18

Desce Gaspar do autocarro suburbano e sobe a encosta do bairro, é meio dia e o bairro está estranhamente silencioso, se deserto ou recolhido não o saberemos, não há ninguém no estanco sujo da esquina, descontando um locutor afogado no aquário da velha televisão doente de fantasmas, enquanto debita na atmosfera dde carapaus fritos mais um comunicado, partiu um avião sa Força Aérea com cinquenta prisioneiros para o norte, certamente com destino a Custóias, as informações militares mantêm-se reservadas sobre o evoluir da situação e do estado de sítio na cidade, reservada também namora esta velhota a fruta que o merceeiro expõe cá fora, pois que tudo são horas de negócio e aflito andará o povo mas comer sempre come, assim possa, que feito será das crianças que não há no pátio desta escola, as ruas estão ali por estar, admiradas, quem sabe, com este vazio de moradores, esta mulher que ali vai d blusa vermelha não sabemos quem é, este homem de sobretudo é Gaspar, e vao tocar à campainha dum amigo, ali no segundo andar.

Prime, de novo, o botão, num arrastado toque de urgência, que fica sem resposta. Nem admira, quem poderá ficar em casa hoje, depois que a velha assim comeu as nêsperas do poema, ele haverá ordens do sindicato, talvez mobilizações do partido, Gaspar domina a perturbação e o desamparo em que está, talvez à noite, Deus queira que à noite.

A velha pistola de guerra mal se lhe acomoda debaixo do sovaco, a guerra parece ter terminado mas deixou este inchaço inútil e suspeito, quem dera que só este fosse, é preciso arranjar modo de passar o dia fora de vistas curiosas. A encosta prolonga-se por cima do bairro, há mesmo além um arremedo de pinhal que resistiu às casas de cimento, uns campos de antigas oliveiras, um cereal raquítico, o incómodo abcesso da pistola acaba por dirigir Gaspar na direcção da mata. Estes campos estão vazios de gente, e debaixo deste pinheiro mais copado escava Gaspar um buraco onde enterra a arma.

As nuvens agitam-se na atmosfera outoniça da tarde, se também terá chegado ao céu o desassossego da cidade, o vento corre fresco entre o casario que por estas encostas se derrama, por entre as vivendas clandestinas que assomam aos picos de Camarate como rebanhos de cabras a tasquinhar restos de capim do verão, os rebanhos das melancólicas cabras de Lisboa, que aos domingos se aventuram até àspistas da Portela e acabam a galopar à frente dos guinchos das hospedeiras de bordo, bolsando pelos cabeços o enjoo do querosene das turbinas. Não tarda muitos anos e nenhuma daquelas hortas sobreviverá lá em baixo, à beira do ribeiro que há-de ser encanado em betão, ceifada a ilusão verde dos caniçais da margem. Tempos virão em que será pouco todo o espaço para rasgar auto-estradas e circulares periféricas, não há fome que não dê em fartura, como é sabido, alguns dirão que mais fácil há-de ser então fugir daqui, com tanta via aberta, outros acreditarão que por aí há-de entrar à força o progresso vindo do estrangeiro em camiões gigantes, em contentores alemães, em paletas espanholas.

Mas isso é o que há-de ver quem lá chegar. Aqui, do alto da colina em que está sentado, relanceando o olhar à escassa e confusa história pátria que lhe permitiram conhecer, e à resumida experiência de vida acumulada, o que vê Gaspar é um povo submetido e parado na infância, esbracejando há séculos contra a miséria que Deus manda,ou o diabo, pastoreado por tiranetes a golpes de hissope e de bastão por quantas paisagens do mundo abriga a rosa do sol, esbulhado de consciêcia e de dignidade em trocas de favores, da salvação eterna e outros, bem aventurados serão os pobres de espírito porque é deles o reino dos céus. O que vê Gaspar é um povo que parou, exangue, à beira dum mar de névoas, apalermado da maresia, um gigante de feira que vai curando as chagas das pernas à sombra dos padrões que o vento semeou nas costas de África, arquejando ao peso das múmias da história enquanto rega as couves, enquanto procura exílio nos subúrbios da Europa a ver se escapa à fome, enquanto vai digerindo o fardo inútil dos mitos que arrasta como uma jibóia exausta, um povo que tem, para tudo, resposta na ponta da língua, menos para as perguntas que é, ele próprio, incapaz de fazer, e que trota a pé, a caminho de Fátima, à procura do extremo, desesperado e definitivo milagre. Nunca mais, desde que o forçaram à Índia, acertou o passo com a própria sombra. E agora, fatal surpresa, aí tem pela frente a liberdade toda de fazer com a história as contas atrasadas, acaso será esta a maior penitência que lhe pode ser dada.

E estas são divagações amargas nossas, está bem de var, maneiras de brincarmos com sérias coisas enquanto vai correndo o preguiçoso tempo, Gaspar está ali sentado debaixo do pinheiro, afogados os olhos numa aflição miúda, a bem dizer vai resistindo ao medo, e não imagina o que virá a acontecer daqui a vinte anos, se o soubesse mais aguda seria a sua angústia.

Nem sequer sabe o que agora corre na cidade, já perguntou a este vento que passa e ele não disse que Caxias está a encher-se de presos, não confessou que em Santarém também os há, que outros chegam em levas a Custóias já o locutor o anunciou, mas nem um nem outro falaram das algemas que lhes prendem as mãos às costas durante o voo, nem das metralhadoras que os pastoreiam enquadrados assim na linha de mira, sobre as espingardas que pedem sangue nem um nem outro se traíram, nem dirão que há baionetas faiscando pela desforra, meu general, consideramos que tudo vai ainda a meio e muito está por fazer, ditosa pátria que tais filhos tem. (Cont.)