sábado, 26 de dezembro de 2015

Letras sem Tretas

«Este livro não é um trabalho académico. Ao correr da pena, reúne e dá sequência a observações empíricas surgidas da experiência escrita, da memória do autor e duma ou outra consulta em segunda mão. Trata-se dum guia prático, a modos de expositor ou manual de escrita, e não de uma obra de indagação ou divulgação científica. (...)
Pretende tão só, num itinerário vagamundo, desvendar uns poucos caminhos, anotar-lhes as curvas e contracurvas, prevenir dos salteadores e trapaceiros, e indicar algumas razoáveis estalagens. (...)»

Mário de Carvalho é um exímio cultor da língua portuguesa e um artista da nossa literatura. A sua extensa obra de ficção vem-no atestando, desde os estranhos Casos do Beco das Sardinheiras (1982), A Inaudita Guerra da Avenida Gago Coutinho (1983), e várias edições de contos; e mais tarde com novelas, com os romances A Paixão do Conde de Fróis (1986), Um Deus Passeando pela Brisa da Tarde (1994), Fantasia para Dois Coronéis e Uma Piscina (2003), entre outros.
Desta feita aventurou-se pelo ensaio didáctico, com este Guia Prático de Escrita de Ficção.
Não se conclua daqui que tais coisas se ensinam, ou se aprendem. Como "ser escritor, a valsa dança-se aos pares: escrita e leitura, autor e leitor, personagem e acção, causalidade e verosimilhança, contar e mostrar... O bico de obra do primeiro livro. Por onde começar? Com que começar? Com quem começar?". 
São reflexões de grande erudição, enorme conhecimento e muito proveitosa leitura. Não farão nenhum milagre, que esses são domínio dos santinhos do papa Francisco! Mas lê-las e acompanhá-las é um encantamento, um raro privilégio dos leitores. São bem uma abordagem das questões da exótica escrita criativa, dum modo muito diverso das xaropadas habituais.

« (...) Mas então o que é a linguagem literária, a literariedade? Estamos de novo à beira do abismo. Esta discussão já vem dos antigos gregos, atravessa a Idade Média, o Renascimento, e continua a rugir nos dias de hoje, em vários campos e com a convocação de novos instrumentos teóricos. Numa certa vulgata do séc. XX passou pela distinção (aliás ociosa) entre forma e conteúdo. Com a redescoberta do formalismo russo, nos anos sessenta, e os ecos do New Criticism, a contenda tomou grande embalo, ampliado pelo aparecimento de novas (e fugazes) formas literárias como o Novo Romance, com todas as suas nuances, e pela intervenção em força dos linguistas. Mas isto são questões de teoria. (...) No âmbito deste trabalho, que é essencialmente prático e não se abalança à teoria, talvez pudéssemos responder a Valéry com umas palavras da Arte Poética de Horácio: "No arranjo das palavras deverás também ser subtil e cauteloso e magnificamente dirás se, por engenhosa combinação, transformares em novidades as palavras mais correntes." (...) O que importa é que as palavras, em contexto ficcional, nunca são neutras. São ultra-vibráteis. Ao menor movimento, ressoam. São caprichosas, sensíveis a cada minuto que passa, a cada relance de luz. (...) Vêm de contrabando, estabelecem-se, envelhecem, desaparecem. Às vezes morrem, muitas vezes ficam adormecidas e são despertadas pelo beijo mágico de algum príncipe das letras, que pode ser um humilde jornalista. Pulsam, ecoam, modulam a sua própria ressonância. (...) A palavra depende sobretudo das companhias. (...)»
[Quem disser o contrário é porque tem razão, Mário de Carvalho, Porto Editora, 2014]