domingo, 13 de dezembro de 2015

Excerto

(...)
Todos os amantes beijaram-se na minh'alma,
Todos os vadios dormiram um momento em cima de mim,
Todos os desprezados encostaram-se um momento ao meu ombro,
Atravessaram a rua, ao meu braço, todos  os velhos e os doentes,
E houve um segredo que me disseram todos os assassinos.

(Aquela cujo sorriso sugere a paz que eu não tenho, 
Em cujo baixar-de-olhos há uma paisagem da Holanda,
Com as cabeças femininas coifées de lin
E todo o esforço quotidiano de um povo pacífico e limpo...
Aquela que é o anel deixado em cima da cómoda,
E a fita entalada com o fechar da gaveta,
Fita cor-de-rosa, não gosto da cor mas da fita entalada,
Assim como não gosto da vida, mas gosto de senti-la...

Dormir como um cão corrido no caminho, ao sol, 
Definitivamente para todo o resto do Universo,
E que os carros me passem por cima).

Fui para a cama com todos os sentimentos,
Fui souteneur de todas as emoções, 
Pagaram-me bebidas todos os acasos das sensações
Troquei olhares com todos os motivos de agir,
Estive mão em mão com todos os motivos para partir,
Febre imensa das horas!

Angústia da forja das emoções!

Raiva, espuma, a imensidão que não cabe no meu lenço,
A cadela a uivar de noite, 
O tanque da quinta a passear à roda da minha insónia,
O bosque como foi à tarde, quando lá passeámos, a rosa,
A madeira indiferente, o musgo, os pinheiros,
Toda a raiva de não conter isto tudo, de não deter isto tudo,
Ó fome abstracta das coisas, cio impotente dos momentos,
Orgia intelectual de sentir a vida!
(...)
[Poesias de Álvaro de Campos, Ed. Arcádia, Lx]