sábado, 12 de dezembro de 2015

Anestesia

Uma doxa de feição nihilista (embora não pareça), instalada de modo sufocante no coração da nossa época, diz que a cultura é um bem precioso e por isso é preciso expandi-la e defendê-la condicionalmente. A esta injunção respondem os governos através da instituição de um Ministério da Cultura ou, pelo menos, de uma Secretaria de Estado da cultura. E digo “pelo menos” porque, de facto, esta segunda modalidade é vista como uma vontade frouxa de erguer a bandeira simbólica da cultura, por oposição ao hastear viril que – assim julgamos - um ministério representa. (...)
Mas o plano simbólico é aqui muito importante. Defender a cultura e criar condições para a sua criação e expansão são desígnios que ninguém de bom senso ousa atacar, mais não seja porque se sujeitaria a uma impiedosa censura pública. (...) Aquilo a que chamamos cultura tornou-se um território ilimitado. Tudo, ou quase tudo, se tornou cultura (...). 
Aquilo que define a noção de cultura, no nosso tempo, é a sua plasticidade e o seu carácter elástico. A esfera cultural tornou-se pan-inclusiva e tem uma infinita capacidade agregadora e de homogeneização. A culturalização global da vida coloca num mesmo regime a promoção dos vinhos do Dão e a literatura contemporânea, os sabores da gastronomia regional e os saberes da poesia, a arte alentejana dos chocalhos e a arquitectura gótica. Neste mundo pan-cultural, governa a lei da indiferenciação. De tal modo que a questão já não é “como defender a cultura?”, mas antes “como defendermo-nos da cultura?” Esta pergunta jamais será feita pelas instâncias governamentais, mas nós temos obrigação
de a fazer e de mantermos distância crítica (...).
Defendermo-nos da cultura, da democracia cultural, é resistir a forças perniciosas. Em primeiro lugar, é resistir à pura e simples integração da arte e da literatura na cultura, não permitindo que elas se tornem dispositivos de pacificação e de redução das tensões. (...) 
Em segundo lugar, a expansão ilimitada da cultura é ao mesmo tempo causa e efeito da retracção da esfera política, é um extermínio doce da política e, portanto, um dispositivo central da despolitização. Em suma: é uma anestesia, exactamente o contrário do que deveria ser.
[António Guerreiro, in Ípsilon]