Os tipos andaram o verão inteiro a furar o passeio, a abrir valas no passeio, a enroscar tubos negros no passeio, a despejar areia no passeio, a desenhar quadrados de cimento no passeio, e a pôr tábuas bailarinas a atravessar o passeio, para as pessoas poderem entrar em casa e não terem que dormir na rua. Encheram o verão de poeiradas, e a rua de poeiradas, e a escada de poeiradas, e os quartos de poeiradas, e até a gaveta das peúgas se cobriu de poeiradas.
Quando o cimento secava, os tipos arrancavam do passeio as cancelas de arame e traziam outra vez o compressor, e carregavam no gatilho do martelo pneumático, e punham-se outra vez a esventrar o passeio porque os canos e tal, a velhice era muita e isso, e a ferrugem ainda mais, derivado aos muitos anos.
De modo que um dia meti-me no carro, fartei-me de andar quilómetros por essa merda de estradas até encontrar uns montes onde não chegava a raiva do martelo pneumático a mastigar o passeio e a lixar-me os ouvidos. Lá fiquei.
Lá fiquei até dar conta de que as peúgas lavadas tinham acabado. As camisolas também já cheiravam mal, mas pior eram as putas das peúgas, quando abria o saco da roupa suja. Era uma coisa que me lixava o juízo, o saco da roupa suja cheio de peúgas podres.
Então lembrei-me da máquina de lavar e voltei para casa, cheguei há uns três dias. O passeio parecia a cara da lua nas imagens da Nasa, mas o compressor estava calado e assim. Não havia cancelas de arame nem tábuas a pendular, nem tipos de cigarro nos queixos, a piscar os olhos atarantados do fumo. De forma que aproveitei para entrar na garagem, a merda do elevador até subia. Atafulhei de peúgas a boca da máquina, dobrei as doses do pó e dos cheirinhos de plástico e deitei-me a dormir.
Ontem à noite carreguei as tralhas no carro. Meti lá dentro a televisão que deixou de dar imagens porque os cabrões me cortaram a antena, arranquei das paredes as gravuras e as reproduções e as serigrafias e as imitações baratas e coiso. A ideia era voltar para os montes logo de manhã, com o saco das peúgas lavadas e camisolas frescas e tudo o mais.
É certo que o verão vai acabar, e toda a gente sabe que os montes no inverno não são pêra doce. São uma porra muito complicada por causa do frio, por causa da chuva, por causa das flores que já não há na horta, à beira do poço e assim. Mas quando vemos um tipo sair de casa com o carro atafulhado de televisões, e molduras empilhadas, e sacos por tudo o que é sítio, ou é que o gajo se passou, ou tem alguma fisgada e está por tudo.
É muito bem capaz de ser verdade. Mas que merda é que se faz numa puta duma casa onde não há barulhos da televisão nem gravuras nas paredes?!
De manhã, ia a sair, dei com os tipos do capacete amarelo a remendar o passeio, a endireitar o passeio, a desenhar quadrados no passeio. Os cabrões tinham montado as cancelas de arame mesmo em frente do portão, e passaram naquilo o dia todo. Que era preciso deixar secar a massa e tal, e que sair só à tarde, lá muito para o fim do dia.
Puta que os pariu a todos, falando mal e depressa. Amanhã tiro a banheira cá para fora. E se ela resistir aos quadrados e aguentar com as livralhadas, as televisões e as molduras, meto por essas estradas à procura dos montes e estou-me cagando para os passeios deles. É que nem ao trabalho me dou de fechar a garagem!