A actividade editorial, (e a literatura digna desse nome), foi em tempos uma camisola, pela qual boa gente deu o coiro, com proveito geral. Havia editores que eram uma marca de água, uma garantia de qualidade.
Mas agora já deixou de o ser, e a sua recente concentração em mãos de comerciantes, que apenas visam o lucro, está aí para o confirmar. De acordo com as novas regras, não é indispensável que uma coisa exista para a tornar realidade; basta que se fale dela, e o deus mercado encarrega-se do resto.
Pelos vistos assim é também com a literatura. O novo romance de João Tordo já era top de vendas, mesmo antes de ser lançado oficialmente, com auras de epifania. E outras ameaças há no horizonte.
O jovem autor sentenciou a propósito, falando com a jornalista: Existe um cânone em Portugal que endeusa certos escritores e sacraliza a escrita, tentando fazer dela uma actividade de deuses e não de homens. (...) A nova geração de escritores tem que fazer tudo para o reformular. Isto enquanto a jornalista destacava a importância que (o autor) dá ao poder da narrativa, em detrimento de artifícios e metáforas de linguagem.
O crítico António Guerreiro veio pôr alguma água na fervura. Referindo a máquina narrativa, reconhece no romance um grande domínio dos códigos e requisitos do género a que pertence. Acrescenta no entanto que este romance responde às exigências de um thriller, mas aliena-se das exigências literárias. (...) Porque não há nele nenhuma espessura.
São exactamente aquelas exigências que a jornalista chamou artifícios e metáforas de linguagem, lá no linguajar dela. Uma e outro desconhecem, pelos vistos, o mais elementar: que a linguagem da literatura é diferente da linguagem comum, normalizada e unívoca. É de natureza conotativa, desviada, não referencial. Entre outros, é desse modo que a arte chega à pluri-significação, que lhe permite sugerir mais do que diz, e dizer muito mais do que afirma. Sob pena de não ser o que é.
Eu não li, nem tenciono ler o livro. Já lhe sofri a receita, e o travo, e a azia. Se o autor considera que a literatura é uma noz que só tem casca, faz ele muito bem. A imbecilidade ainda não paga imposto. Não prometa é reformular uma coisa de cuja existência nem suspeita.
E a multidão dos leitores, que das nozes com a casca se contentam, faz ela ainda melhor. A quem não dispõe de dentes, de que servia o miolo?
No entretanto, a questão fulcral continua a ser uma: a quem serve esta literatura?