segunda-feira, 5 de abril de 2010

Páscoa antiga

Daqui desta janela vejo o mundo, o pouco ao menos que dele se deixa ver. Como o padre, que agora mesmo chegou, e veio cambaleando até à paragem da carreira.
É segunda-feira de Páscoa. E todos os anos, na segunda-feira de Páscoa, acontece a mesma coisa. Sua reverência sai de casa, vermelhusco e azamboado ainda, a arrastar o corpo mole até se desfazer dele num banco da velha Dodge amarela, que aí passa ao meio dia. Vai à vila, dizem as línguas más, sossegar a consciência junto do arcipreste, e confessar o pecado da bebedeira pascal. É assim todos os anos, toda a gente conhece o ritual, e olha o vulto hesitante do padre com tolerância ou desprezo, conforme o caso de cada um.
Já é sabido, depois da missa vem o almoço, e pelas três da tarde o compasso começa. As primeiras casas são as da rua de cima, atrás da fonte, e os homens adiantam-se para não serem apanhados em falso, seria grande heresia. Nas outras bem pode o dono gozar mais um migalho no adro. A função só termina já noite cerrada e o padre vai alargando os seus vagares, à medida que os copos de vinho fino se lhe acumulam no estômago, e a litania das bênçãos dá em sair-lhe mais empastada da garganta.
Vai o da campainha lá na frente, um garoto qualquer, a chocalhar o badalo por tudo e por nada, a anunciar o movimento. Depois vem o da cruz, homem maduro, de opa avermelhada. Entra sisudo e oferece a prata em volta aos beiços da assembleia, ainda não terminou a roda inteira e já o padre está chegando. A casa é térrea e mal iluminada, e o denso vulto atravessando a soleira mergulhou o adjunto na obscuridade. Há saudações canónicas ao bem-estar dos corpos e ao sossego dos espíritos, aleluia aleluia, toda a gente sabe de cor o salmejar mas apenas o padre o recita e alguns o tomam a sério, não quer vossa reverência um copo de vinho fino, uma fatia do nosso pão leve, Maria traz uma cadeira aí do quarto.
Discreto entrou o que recolhe os óbolos, ora a moeda presa nos lábios duma laranja, ora o donativo escuso na reserva dum envelope, di-lo-ão mais generoso. Inventam os homens estas cerimónias e nós ficamos ao certo sem saber. Traz o rapazote um saco pequeno de veludo encarnado, de vez em quando toma-lhe o peso com ambas as mãos e alegra-se de verdade, sem saber porquê, à medida que o vê ganhar corpo e substância. O saco tem laços de garrote, a cada função compete a conveniente palamenta, que a igreja não dispensa. E estes são tempos de ocorrência abundosa de meios, os humanos e os outros, vasto e submisso é o rebanho, não é o que se verá daqui por uns anos, um dia lá chegaremos.
Este do saco há-de ser rapaz de confiança, sabido como é dispor o demo de muitas artimanhas e vastíssima experiência em malas-artes. Ora desviar para bolso próprio o que à santa igreja mais convém seria perdição do pecador e grave dano do padre. Por isso escolhe sempre um moço de família para a função. Desde há uns anos, para evitar as tentações mais correntias, vem-na ele reservando a um rapazito que tenho aqui na escola, não sei com que proveito, do padre falo, é claro. Por enquanto é ele atilado o que basta, na aula pelo menos, quanto ao resto não porei as mãos no lume. Consta que o padre o tem encomendado para seguir o seminário, única forma de fugir à fatídica enxada, talvez venha ele a escrever estas histórias que por aqui hoje acontecem, um dia Deus o dirá.
Casas há em que o padre se demora mais um pouco, e não será do calor da recepção, que em todo o lado é alvoroçada avonde. Talvez seja do conforto da casa, ou tão só desta sabida conivência com as famílias mais graúdas, os séculos ensinaram à igreja tais diplomacias, só as não vê quem não quer, a pobreza e a humildade pertencem ao sermão e a igualdade só no céu a encontraremos, em na havendo. Por isso aceita agora o padre sentar-se no velho canapé, ajeita-lhe a dona da casa as almofadas em volta das cadeiras, ao menos tem o pobre, neste dia, direito a cuidados de mulher.
Estende sua reverência um pouco as pernas, entorpecidas do vasto caminhar, enquanto corresponde à geral alegria dos rostos e à particular disposição do dono da casa, não há como este júbilo no coração dos humildes. E a nós que nos importam as fraquezas dos homens se afinal o que conta é esta conivência, este reconhecimento dos interesses mútuos, tirai às gentes estes rituais e a vida será logo um vale de lágrimas, sem interregnos nem sentido, um chapinhar na lama dos caminhos. Porém hoje o mesmo Cristo ressuscitou dos mortos, aleluia aleluia, vai mais um copinho antes da partida, senhor abade.
Cá fora vai a tarde escurecendo, mal se distinguem ao longe os campos de centeio, verdes cabeleiras a ondear ao vento, nem se define já com precisão a cor dos lilases a espreitar à esquina das hortas. Ficou só o rescendente aroma a espalhar-se por estas fragas do Cabeço, sete casas nos faltam antes de recolher à sacristia e arrumar a palamenta, aleluia aleluia.
No fim do compasso, cansado o corpo de tais trabalheiras e fatigada a alma destas desobrigas, recolhe o padre em casa toda a quadrilha. É o momento do caldo verde e do galo capão em molho de vilão. Pois que se pode outra vez comer carne lá estão as mãos da velha cozinheira afeitas ao pitéu. Exultam os estômagos da rapaziada, que o mais sacrificado foi o galaroz. Mas cada um tem seu destino e hora, e os deste há muito eram conhecidos, só ele talvez os não soubesse. O padre pôs-se à vontade, libertou finalmente os pés nas chinelas de trapo, tira o cabeção e abate as defesas perante o garrafão de tinto. Isto vem a produzir momentos de risada aberta e sã camaradagem, parece isto uma santa irmandade primitiva, e acaba por levar a um pesadiço torpor, rebolam entarameladas as palavras nos beiços orlados de gordura, que a gente é de gesto rude, e já as ideias se enovelam, parecem tropeçar umas nas outras. É tempo de deixar aberto o campo ao sono, amanhã voltaremos a ver-nos, quem sabe se ainda nos lembraremos disto. Mas o melhor é que nos não lembremos.
A Dodge amarela já lá vai, uma chiadeira de molas nos poços do macadame, será do peso do padre, Santa Eulália o acompanhe. Tem ele um automóvel aí, numa garage improvisada lá para os fundos do povo. Para o que lhe havia de dar, um dia apareceu aí com o animal, espécie de cavalgadura sem ferraduras, preto retinto com dois enormes olhos de sapo no focinho, a encimar uma larga dentuça de varetas de metal, não sabe a gente se vai a morder ou se vai a sorrir. Foi uma exaltação na garotada, e tão grande era a nuvem de pó na estrada como a fumarada escura que lhe escapava das tripas ruidosas. Mas o padre, ao que consta, não se ajeita bem com a alimária. Um dia destes quis pô-la ao sol, e só à custa de muita força de braços ela soube mover-se. Parece que os ratos já tinham aproveitado o estofo dos bancos para fazerem criação, quem vai chamar-lhes parvos. Em todo o caso, mesmo que estivesse o animal disponível para a caminhada, dez quilómetros para cima com outros tantos para baixo, não no estaria hoje o padre, com a celebreira que ainda arrasta.
Bem vistas as coisas, tolerância com ele não me falta. Uma mulher é diferente. Mas não se enterra assim um homem sozinho numa aldeola que nem vem no mapa, sem ter quem o use e o cuide, à sua volta uma caterva de aldeãos sujos e miseráveis, crendo no céu e no inferno como lugares físicos e verdadeiros, triste rebanho bíblico a viver no esterco com ninhadas de filhos, e a pedirem fiado na venda, para se alumiarem, meio litro de petróleo que chega no carrão, de mês a mês.
Fica o homem confinado entre a sacristia e o altar-mor, num gineceu de bafio, obrigado a acreditar nas trapaceiras que infantilizam mais a desgraçada gente, a prometer-lhes a eterna ventura no além, para que eles aceitem resignados a miséria em que vivem, para que eles continuem a suportar a canga do servilismo até ao último sopro, os bens deste mundo não são dos bem-aventurados, porque deles é o reino dos céus e só esse contará. Levantam-se, noite ainda, e fazem troar pelas calçadas os tamancos ferrados de pau para acudirem à rega da horta de que se alimentam, para sacharem o milho que tratam às terças com o dono da terra, para segarem, no corgo, a erva da vitela que trazem ao meio-ganho, para cevarem o porco que hão-de levar à feira de Agosto, e de que esperam algum sobejo depois de pagar a renda, depois de entregar a côngrua, depois de comprar uns farrapos aos filhos nas tendas ambulantes.
Levantam-se gelados de frio para apanharem as castanhas nos soitos do senhor conde, de que hão-de receber a mais minguada parte, e lá vão, ainda a manhã vem em Castela, a picareta às costas e o gasómetro de acetileno na mão, a caminho das minas da serra, as botas de pneu já na última e os pés enterrados na lama das galerias, um dia, que ainda vem longe, vão todos empenhar-se e pagar a um passador que os leve daqui para fora, hão-de passar a fronteira a salto, de noite, como ladrões de quinta, hão-de cruzar a pé serras geladas fugindo aos carabineiros, porque essa há-de ser a única forma de escapar a esta miséria.
Por enquanto levantam-se cedo, ainda meninos, e vão guardar as ovelhas merinas dum doutor qualquer por esses montes, pobres enjeitados cujo fito maior é escapar à fome, é poder adormecer à noite sem o relógio da barriga a dar horas. Conhecem as chalanas pelo nome e pelas marcas da pelagem, e levam de farnel um bocado de pão e figos secos numa meia velha da patroa, e lá vão, a sonhar com os vermelhos de anilina com que hão-de pintar o rebanho em chegando a festa da Senhora da Saúde. Hão-de dar três voltas à capela com o carneiro enfeitado à frente, a cabeça do rebanho irá juntar-se à cauda e então há-de o pastor sair da roda e ver o gado a girar, à volta da santinha que o guarda das doenças, e há-de ser então tal padre, tal pastor, nem sempre a comparação nos sai assim tão exacta e percuciente, com perdão da palavra.
E havemos então de ver se o pregador põe a chorar ou não o mulherio na missa da capela, caso em que se dará por bem empregue o dinheiro que ganhou. Vede, irmãos e irmãs, como sois indignos da misericórdia de Deus, porque chafurdais no pecado e mantendes cerrados os ouvidos à voz benigna do Senhor, e cultivais o orgulho e a soberba quando devíeis ser submissos e obedientes diante da palavra da Santa Madre Igreja e das autoridades, pois não há em todo o mundo um jardim de paz e de ventura como esta nossa pátria eleita pela Virgem para sua morada na terra, e tudo isto é obra e sacrifício dos sábios governantes que Deus nos mandou e que vós não respeitais cabonde, vede só o que vai de guerra por esse mundo, mormente a desgraça dos nossos vizinhos espanhóis que Deus, na sua infinita misericórdia, acabou por salvar. Por isso três vezes amaldiçoado há-de ser aquele que não fechar os olhos do corpo e da alma às tentações e às falácias do mundo, e aquele que praticar a soberbia e a vaidade, e a ambição e a inveja, pois bem sabeis, irmãos e irmãs, que Deus desprezará o primeiro que na fila se colocar para receber no dia fatal os presentes divinos, e lhe pegará pelas orelhas, e o expulsará para o último lugar da divina quermesse.
Fica o homem, coitado, preso no que diz, condenado a acreditar naquilo que lhe resta, em verdade, em verdade vos digo, que já não sei se vos digo aquilo em que acredito, ou se creio, afinal, naquilo que vos digo. E assim eu compreendo o pobre padre, que se adormece no vinho, outros descambarão em práticas mais inadequadas, quem sabe se mais humanas. Por mim, cumpro o meu papel e varro a minha testada. Vou abrindo estas cabeças rudas, para deixar nas mãos de cada um alguma arma útil amanhã. Mesmo que nenhum deles tenha consciência disso. Se assim não fosse, havia de me acontecer a mim pior que ao padre.