sexta-feira, 21 de agosto de 2009

Portugalmente (51)

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A rua do mesmo conde, que um dia se tornou republicano, leva o viajante para fora das muralhas, num lanço que desapareceu. As pedras não foram longe, se com elas se fizeram umas casas que além estão, e as paredes que as circundam, e uns merlões que as enfeitam, debaixo duns arvoredos. De uma torre das portas do Carvalho construíram esta praça, que pede restauro urgente. E o viajante conclui que são antigas as guerras do património, e mais ainda as rapinas. Lá ao fundo, sobre a esquerda, vêem-se as Portas de El-Rei. Daqui até lá não há muralhas há muito.
Pela sombra duns freixos velhos, o viajante chega ao rossio da feira. Assim cercado de tapumes de lata, é um lugar indescritível. E anda nele uma pequena multidão, na azáfama das montagens. O viajante é que já lá vai, mais interessado em chegar ao Alto dos Frades, e às frescuras do parque municipal.
Em tempos houve aqui um convento franciscano, hoje apenas resta dele o nome do lugar, o corpo desta igreja e uma torre sineira. E a câmara municipal, num momento de boa inspiração, aproveitou os fundos europeus e construiu aqui um centro cultural. Do corpo maior da igreja fez um auditório, que um dia há-de vir a ser teatro municipal. E ao lado construiu um de raiz, onde se pode ver cinema. Conquanto sejam recentes, os filmes do cartaz não agradam ao viajante. São fitas de aventuras explosivas, de efeitos mirabolantes, contam guerras de galáxias inventadas, para esconder as guerras verdadeiras que nunca faltam no mundo.
Logo ao lado fica a biblioteca, que há muito fazia falta e está aberta a esta hora. No átrio há uma mostra de pintura, de cores quentes a gritar nos painéis, e ao viajante seduzem as harmonias delas. Já o mesmo não dirá dos temas em que o pintor esbanja o seu talento. Tudo são cavernames de naus, e miragens de velas enfunadas, e perfis de heróis do mar, e arcazes de tesouros inventados, e muitas cruzes de Cristo, e mitos a surgir dos nevoeiros. O viajante leva consigo a harmonia destas cores e deixa atrás os destroços ao cuidado das marés, que é o seu destino natural.
A moderna sala de leitura tem ligações à Internet. E de bibliotecárias está ela bem servida, que são simpáticas e muito numerosas, e ouvem música moderna para se distraírem. As lombadas dos livros ressonam nas estantes, por faltar quem as acorde. Mas este viajante não vive fora do mundo. Dá-se por muito contente com estas instalações, que são funcionais e discretas, e não suscitam reparos estéticos. E os livros a ressonar, as belas adormecidas da história que aqui se conta, algum príncipe há-de vir para os acordar um dia.
Cá fora o largo fronteiro é agradável de ver, só lhe falta o arvoredo que já teve. Sobrou algum freixo antigo, dos que fizeram as glórias deste campo. Porém dos cedros do Líbano encostados à capela não resta nem um sinal. Parece que também chegou aqui a conspiração da pedra, que tomou conta do mundo, o largo tem pedra a mais. Não sabe este viajante, ou andará esquecido, de que mais mandam no mundo os interesses que as paisagens.
Empurrado pelo calor, fugiu para a fresca do parque, bastou-lhe cruzar a estrada. Com a prisão que tem por árvores, veio-lhe mesmo a calhar. O parque não é exemplo de bom gosto, nem espelho de cuidados, nem parece ser objecto de paixões desenfreadas. Não é caso de admirar. O viajante deixa-se levar pelas ruelas de saibro, de cabeça no ar, pelas várias naves desta catedral pagã. São altíssimas as copas, sempre a disputar o sol, que não pode esta faia chegar-se àquela tília, ó vizinha dê-me lume. Lá tem a natureza as suas regras, assim as cumprissem todos.
O viajante leu os seus roteiros, mas eles pouco dizem do tesouro que aqui está. Foi pedir informações e algumas encontrou. Em tempos mais antigos era aqui um viveiro das estradas, e todo o vilão que manejasse enxada havia de plantar três árvores por ano, sob pena de multa. As carreteiras de então eram lentas e molestas, a circundar esses montes à torreira do verão. Não havia mais refrigério, para andarilhos e alimárias, que bordejá-las de sombras. Ainda hoje um tal cuidado é cativante. Mas não explica donde vieram estas faias, e os vários tipos de cedros, e os bordos da Noruega, e os castanheiros da Índia, e as tuias americanas, e os variados carvalhos, e os teixos, e os mostajeiros, e as sequóias wellingtónias, e os múltiplos abetos, pinheiros bravos e mansos, e freixos, e azinheiras, e plátanos, e robínias, e os loureiros, e ulmeiros, castanheiros e sobreiros, e o mais que este viajante não sabe identificar.
Afinal um tal milagre, este, sim, dos verdadeiros, chegou pela mão dum homem, um autarca de há cem anos que ainda serve de exemplo. Bravo do nome que tinha, e mais ainda do génio que o animava, transformou o tal viveiro num parque municipal. O viajante havia de guardá-los na mesma caixa de jóias, o parque e o António Bravo, se soubesse onde ela está. E fica a pedir aos deuses que nenhum aventureiro volte a descobrir a Índia, pois foram troncos assim os mastros reais das caravelas. Gastaram-se oito milhões. Ora a história já mostrou, a quem o quiser saber, que a Índia toda inteira não valeu a majestade deste carvalho alvarinho.
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