sábado, 8 de agosto de 2009

Portugalmente (48)

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Não contando com a feira, que uma vez por ano vem ao campo dela, e os mercados semanais fora de portas, este é o coração comercial da vila. Sempre foi, desde que o fizeram os judeus, outra das famas da terra. Não era então o que é hoje, claro está. Nem o recto alinhamento desta rua, nem a arquitectura de três pisos, descuidada nalguns casos. Esses vieram depois, só é original o coração.
Bem a propósito, queria o viajante ver a casa do Gato Preto e não calhou. É o leão da tribo de Judá, uma pedra ali atrás numa fachada, numa praceta onde judeus viveram. Caçados como gamos em Castela, vieram aos milhares a procurar refúgio, em Penamacor, em Belmonte, na Guarda e noutras terras do reino. A Foz-Côa trouxeram eles os cultivos do cânhamo, donde vinha a cordoagem que aparelhou muitas naus que à Índia foram. Ao mesmo engano arribaram a Trancoso. E muitos eram eles nos tempos de D. Pedro, o luminoso príncipe das sete partidas, que à falsa-fé mataram em Alfarrobeira, e do rei João II, que terá indultado o padre Costa, como estamos lembrados. Foram a mais-valia desta terra, enquanto cá viveram. Mas logo veio um rei oportunista e caça-noivas, e outros ainda piores. Uns judeus foram postos a ferro, outros metidos a fogo, os mais acabaram a fugir. E conta o Herculano que trezentas crianças vaguearam aí por esses montes, sem abrigo, sem rumo e sem consolo, clamando em alto choro pelos pais. Algumas foram parar à ilha de S. Tomé.
Mas o viajante está cansado destas histórias tristes e de ruas desertas, e não foi ver o bairro dos judeus. Prefere andar aqui na Corredoura, no meio do burburinho, a espreitar as lojas de pronto-a-vestir, e os placares de fotógrafo, e as montras com fatos de casamento que é agora o tempo deles, e os expositores de vinhos, e as casas de ferramentas e ferragens, e as mercearias finas, e os enchidos regionais, e a papelaria geral, e um barbeiro muito antigo que ainda dura. Prefere misturar-se com os passantes e observar-lhes o gesto compassado, e bisbilhotar conversas, e ver as compras que trazem, eles de chinelos e bermuda curta, elas aos berros às Sabines e às Denises, que se tresmalham na confusão. O viajante prefere ser um bebe-água entre tantos.
Entra num café para matar a sede, acaba a puxar conversa para o negócio. Que já não é o que foi, logo explica a locandeira. Porque o negócio caiu a metade, do ano passado a este. As pessoas passam e não gastam, tanto velhos como novos, que a crise vai a todo o lado. Isso mesmo faz este viajante, quando pode e lho permitem. Vai a todo o lado, e agora veio parar a este largo da câmara.
Os paços do concelho estão aqui há cem anos. O largo fronteiro é um recanto aprazível, que o desleixo de algumas fachadas não beneficia. Tem no meio um quadrado de jardim, e o viajante resiste a dar-se conta de que lhe plantaram no meio uma estátua do Bandarra, em tamanho natural. Lá irá, quando tiver que ser. O edifício tem presença bastante, e um rosto que mistura lembranças do românico e uns ares neo-clássicos, se uma tal coisa existe. Apenas o elevado encume o desfigura um tanto. Possui um avultado frontão e sacada de pedra a meio da fachada. E seria um bom lugar para discursar ao povo e anunciar uma nova república, que bem precisa era, se um tal exercício ainda estivesse em uso e o milagre acontecesse. Não é o que parece a este viajante, e o mais útil da sacada há-de ser o mastro da bandeira, nos dias assinalados.
Em todo o caso é de ver enquanto é tempo, o edifício e o largo. O viajante foi encontrar num boletim uns alçados tri-dimensionais que são aterradores. Acrescentam ao dorso do paço um albardão de burro, com alforge lateral a pender-lhe do flanco. Como um caracol endoidecido que engendrou duas conchas, e arrasta, de castigo, uma casa devoluta.
Um cidadão cordato, que sem protesto paga os seus impostos, há-de entender que tudo se faz velho, que este mundo cresceu e as instalações da câmara se tornaram exíguas. E há-de faltar espaço onde acomodar assentos e labores, e as modernas e muitas assessorias, não venham outra vez os emigrantes sonhar com varandas para a rua à altura dum pescoço, como já temos visto. Porém, sendo esse o caso, não faltam edifícios supletivos com a nobreza exigida a dois passos daqui. E não os havendo feitos construam-se de raiz, poupando estardalhaço e custos. Serão isto projectos sem data marcada, isso o viajante não o sabe. Mas não há fumo sem fogo. E tudo é de temer, num país que já teve um rei magnânimo e o ouro dos Brasis, e volta agora a ter a ilusão dele, com os fundos europeus. Se o tal albardão vier, adeus paços do concelho, adeus meu largo, adeus justa medida.
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