quarta-feira, 5 de agosto de 2009

Portugalmente (44)

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Quando acorda, já tarde, tem à espera o céu do planalto. Nem todas as manhãs serão assim, mas esta veio ao viajante como uma prenda de anos. Não é coisa que entendam à primeira uns olhos acostumados à incerteza das brumas, à cerração melancólica dos fumos da cidade, à poeirada dessas avenidas. O viajante suspeita de que um céu assim é alto privilégio e aproveita-se dele, mas não sabe como há-de defini-lo. Dá com as portas do Prado e vai andando ao longo das muralhas, reduzidas agora à função mais singela e mais nobre de todas, passear nelas o olhar. Foi à procura das argolas de ferro espetadas nas frestas, onde ficava presa a multidão dos jumentos antigos, enquanto os donos corriam ao mercado. Viu-os numa imagem já velha, as argolas e os burros, e com ela se dará por satisfeito, já nada disso existe. O que muito se vê são cartazes, pendurados nas árvores, a anunciar a feira de São Bartolomeu. É outra fama da terra, e já vem perto.
A feira vem dos tempos do rei bolonhês, aos anos que ela dura. Antigamente vinham dar aqui os caminhos todos, de Lamego, de Além-Doiro, da raia do Côa, da Malcata, de toda a serrania em volta. Semanas antes já se viam manadas de gado e maltas a passar, estradas fora. Caminhavam pela fresca e matavam a sede onde havia uma fonte, a sombra dum ribeiro, um descampado. Acudiam aqui negociantes, bufarinheiros, troca-tintas, marchantes, saltimbancos, adivinhos, troveiros cegos, bandarras, e a gentinha toda desses montes e vales, só não vinha à feira quem estivesse de cama. Durante séculos foi o centro da vida desta província, oxalá sobrasse dela alguma coisa, nestes tempos de tão carecida vida.
À procura do melhor panorama, o viajante sobe ao primeiro andar do tribunal e não fica arrependido. Abre sem licença uma janela para o largo, e outra vez se teme das ameias do alcácer, facinorosos dentes lá no alto. Namora-se do enredo das empenas antigas, das torres das igrejas avultando, e fica ali tempos infindos, o olhar preso ao correr das muralhas, desde a porta do Carvalho até lá ao fundo, à praça. Estava ainda a pensar nos burricos de antigamente, ali à espera do dono, quando veio o oficial de diligências a gritar no bulício do átrio um rol de testemunhas.
O viajante não pode senão dirigir-se ao castelo, e faz questão de entrar pela porta da traição, não há melhor caminho para vencer a mais dura muralha. Há fendas numa torre da cidadela, uns técnicos montaram uns andaimes, haveremos de ver o resultado. Mas do que o viajante mais se teme são estes tufos de hera, fincados na cantaria. Um dia acabarão o seu trabalho de ruína, já visivelmente começado. Parecia simples, era matar a hera. Se não morasse tão longe o dono destas pedras, respondem ao viajante os técnicos dos andaimes.
Assim deixado em branco, o viajante rodeia a cidadela. Enche os olhos no vastíssimo horizonte, desde Penedono, a norte, às escarpas do Douro, à Marofa e à serra da Gata, às terras do Sabugal, aos contrafortes da Estrela, para acabar outra vez a poente, no monte do Almansor. O céu é o cristal que se vê, e o sol, subindo, acentua o azul. O viajante não cabe em si de contente, com a benesse de andar aqui num tempo assim. Passada a feira não tardará o outono, e há-de vir outra vez um longo inverno, e o frio voltará a lembrar-se do jantar que tem sempre na mesa, quando chega a Trancoso.
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