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Apesar dos muitos séculos que já passaram por ele, o bairro tem habitantes que o mantêm conservado. O viajante encontra alguns lugares devolutos, aqui uma fachada à venda, ali uma ruína, e hortas antigas por trás de muros velhos, donde espreitam loureiros e lilases e braços de rosas bravas. Acorda um gato que dormita ao sol e vira para a rua da Alegria. Há varandas tratadas com esmero, e casas recuperadas, e mais tufos de hortênsias à raiz das paredes, e latas de nardos e açucenas. As ruas são estreitas, sombreadas, e o viajante estimaria encontrar gente onde vivem tantas flores. Terá ido à Corredoura, a fazer alguma compra, em casa ficou a história.
Segue a rua dos Cavaleiros, onde antigas pedras de armas recordam gente fidalga. Ladeia uma igreja que lhe não prende a atenção, pois toda a que tem não basta para reparar no colosso que lhe ensombra o adro inteiro. Este viajante guarda por árvores uma grande prisão, não lhe importa a qualidade ou a grandeza. Mas nem precisa dum tal padecimento para ficar impressionado, a tília é um monumento. Se continua a crescer, e o lajedo isolador dos paisagistas não vier a molestá-la, um dia cobre-lhe a copa o burgo inteiro.
Ao lado há um triângulo de jardim, que escapou até hoje aos projectistas. Já foi terreiro de freiras, e agora oferece poiso a melhores companhias, debaixo das olaias. Mora lá dentro o busto dum médico filantropo, que soube fugir à regra geral. E quando há casamentos, como é usual nesta altura do ano, os noivos deixam-se filmar, embevecidos, nos canteiros de buxo. Não há nisto surpresa ou novidade, que tudo começou no paraíso, num jardim, como estamos lembrados.
Lembranças, nem todas boas, quem as guarda é o belíssimo alpendre de quatro colunas, que fica ali num ângulo do jardim. É uma velha casa do séc. XIV, já viu mais mundo que os olhos que nela dão, e foi recentemente restaurada. Muito embora não pareça, já foi quartel-general. Nela assentou arraiais o inglês Beresford, que por aqui andou a resistir aos franceses, no tempo das invasões. E do inglês não serão as más lembranças, se o fizeram conde de Trancoso e dono de Portugal. Do povo da vila sim, que sofreu ocupações de ambas as partes, aturou a alvoroçada soldadesca, e proveu a manjedoura das montadas.
Já deste paço ducal resta o vulto e a fachada, vê-se o telhado ruído através das janelas. É um surpreendente Finalmente Hotel, de quatro estrelas pintadas numa guarnição de plástico, ao longo da frontaria. A imagem é surrealista. Mas terá faltado alguém que aprovasse o projecto, ou foram parar a outro lado os fundos prometidos. Porque agora a guarnição já começa a romper-se, e o hotel ficou pelas promessas. Melhor assim para o médico filantropo, que escapou aos paisagistas, e para os casais de noivos, que têm aqui à espera o jardim das delícias. Mas o que mais importa ao viajante é a harmonia sossegada desta praça, que uma ruína aqui havia de estorvar.
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