sábado, 20 de dezembro de 2008

Portugalmente (9)

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O viajante deixa para trás os últimos chalés de Sebadelhe, que encontraram lugar ao longo da estrada. Têm uma geometria caprichosa, e o verde pujante das latadas e trepadeiras que os enfeitam faz sobressair o ocre dos azulejos e o vermelhão pesado de algumas paredes. O último de todos, já no meio duns pinhais, seria um bom exemplar do rococó pós-moderno, se uma tal coisa existisse. E teria dimensões humanas, não fora o anexo erguido nas traseiras, que pede meças ao convento de Mafra e lhe serve de armazém.
A estradinha, que é uma fita escura de papel macio, vai descendo entre arvoredos, agora pinhais que resistem, logo soitos de castanheiros muito velhos, a deslizarem há séculos para o vale. Avistam-se chãos ao abandono, pequenos campos de cereal maduro, e ao encontrar as primeiras hortas verdes logo depara o viajante com uma tabuleta a anunciar as Corças. Lá estão as primeiras vivendas instaladas na encosta, depois de passada a estátua duma Virgem, provavelmente de Fátima. O viajante lamenta a sua desfortuna, a dela. Para além dos trabalhos de cuidar de quem passa, deixou-a o paisagista de costas eternamente voltas para o vale, proibida de assistir, alguma vez, ao milagre do nascer do sol.
A estrada conduz directamente a um pequeno largo, que é o centro da aldeia, onde há dois cafés. Bem a propósito, pensa o viajante, pois de um café vem ele precisado. Mas a esta hora a dona Blandina tem a máquina desligada. Recebe o seu cliente com ar afável, e explica-lhe que a escassa clientela não paga, as mais das vezes, a corrente que a máquina consome. O viajante tem pena, faz-lhe falta o sabor do café, e mais ainda a cafeína, mas não quer sair assim de imediato, e ir bater à porta da concorrência em frente. Terá de contentar-se com a explicação pesarosa da estalajadeira, e com o gesto curioso dos três conversadores que estão ali sentados a uma mesa, e interromperam a conversa. O mais velho é tio da dona Blandina, o outro é irmão e a mulher é cunhada. Está, assim, tudo em família. Todos andaram por França, no seu tempo, a custo se encontrará na aldeia quem o não tenha feito, e a dona Blandina nunca mais se esqueceu da aflição com que passou a fronteira de Espanha, com os dois filhos pequenos, há trinta e tal anos. Este viajante pode testemunhá-la, que a viu bem viva nos gestos espontâneos da mulher. E o viajante, que já ouviu muitas histórias de emigrantes, e viu ainda mais aventuras no cinema, conclui que não ouviu todas as histórias, nem viu os filmes todos. Nunca tinha imaginado uma mulher a saltar, de noite, a fronteira, com dois filhos ao colo. Mesmo uma mulher assim desembaraçada, como seria então, e ainda hoje é, a dona Blandina.
O marido estava do outro lado, à espera dela, e levaram dois dias a chegar ao norte da França. Viveram lá dez anos, mas as humidades do clima davam-lhe muito mau viver. De forma que um dia decidiram voltar antes do tempo, já lá vão vinte anos, por via da saúde dela. Depois de construída a casa, abriram o café e uma mercearia ali ao lado. A dona Blandina encarrega-se do atendimento, está-lhe mais no feitio despachado. O homem trata das hortas, do renovo, há uns anos ainda teve uma vaca, mas deixou-se dela. Agora só tem uns bichos para os gastos de casa, um porco, umas galinhas, que outra coisa não paga a pena, nestes tempos que correm. E a dona Blandina já decidiu fechar a sua mercearia. Por falta de clientes, e pelas complicações da contabilidade, e das papeladas que agora são obrigatórias.
- De que vivem as pessoas aqui?
(...)