segunda-feira, 15 de dezembro de 2008

Portugalmente (8)

(...)
Ao fundo da encosta esbarra o viajante numa larga rua asfaltada, que é a estrada por onde veio. Tivesse ele escolhido outro caminho na bifurcação que deixou lá atrás, e logo aqui tinha vindo parar. Ganhava tempo, em troca de perder tudo o que viu. Aqui encontraram as casas novas dos emigrantes espaço adequado, há delas uma boa meia dúzia, com hortas e jardins em volta, e árvores e muitas flores, e volumes ainda maiores que os da padeira de Aljubarrota, que ficou lá no alto.
Se for verdade que fica sem mama quem não chora, bem fez o soviete de Sebadelhe, por tanto ter chorado. Que ali abaixo, num desaterro, encontra o viajante a escola da aldeia, há trinta anos reclamada. Hoje está fechada e solitária, porque deixou de ter crianças que a animem. Pena é, chegar só a fartura quando a fome já nos passou, é o que pensa o viajante, enquanto descobre que a aldeia não se acabou aqui. Há um remate além a cem metros, para lá do ribeiro que desce da serra, e já tem o pontão que lhe fazia falta.
É aqui, neste prolongamento da aldeia, que ainda estão as casas da Corredoura, onde viveu o último morgado de Sebadelhe. São uma fábrica rústica e severa, abandonada aos séculos, e ninguém lhes pedia no seu tempo confortos impróprios. O viajante entrou no vasto quinteiro escancarado, imaginou os carros de bois a chiar na ladeira, os homens e os bichos a tresandar a cansaço, e só tem pena de que não haja aqui ninguém que lhe deixe ver a cozinha. A avaliar pela chaminé, merecia uma visita. A cozinha é o lugar melhor para viajar no tempo, através duma casa destas, pensa o viajante, que começa a sentir-se desamparado, como quem arribou a uma ilha deserta. Vai à procura da capela do anjo S. Miguel, a ver se encontra nela os santos que não quiseram um dia mudar de casa. Mas o único rasto que encontra é uma janela na parede, à beira da estrada. Sobre a capela construiu-se esta casa, porque onde os santos gostaram de viver, melhor viverá gente. Se gente houver para nela viver, e não parece o caso.
Mas o certo é que mata caça quem porfia. O viajante ouviu finalmente uns falares de homem, dobrou uma esquina e entrou nesta ruela, que vai ter a um logradouro sem saída. Entre duas casas brancas, de cimento, logo lhe deram os olhos num majestoso alpendre de granito, de vasta escadaria e corrimão de pedra a que faltam pedaços, alguns a escorregar, mal seguros num ferro. No logradouro ao fundo andam três homens ocupados, na verdade com ar de poucos amigos, e um cão que está preso a um arame ladra desaustinado. O viajante hesita, enquanto observa a cantaria espessa e regular, as flores do sabugueiro a espreitar por dois janelões, e a carranca de pedra a sair da parede, uma cabeça de carneiro já gasta e puída. Ainda a hesitar sobe as escadas e encontra duas portas, aqui viveu o juiz de paz, ali foi em tempos a casa da câmara de Sebadelhe. Isto cogita o viajante, dando asas à imaginação, enquanto desce, emocionado, sem certezas nenhumas.
- Que tem que fazer aqui?
A pergunta vem de um dos homens, que avança para o viajante com olhar torvo, e um banco de metal agressivo nas mãos. O viajante, que detesta contendas, fica desamparado. Observa outra vez o empedrado da rua, levanta as mãos em sinal de rendição, dá mais uma mirada às casas do juiz de paz.
- Quer comprar?
- Que ideia! Ando apenas a ver estas vidas antigas, julguei que era pública a rua.
E já foi, mas já deixou de ser. O homem fez dela coisa sua, porque tudo o que nela está lhe pertence, menos as casas velhas.
- Você entra por aqui, sem dizer nada... sabe-se lá o que anda pelo mundo, hoje em dia!
Por sorte sua, o viajante nunca desejou ser dono duma rua. E, se não tiver a pinta dum celerado vulgar, concorda pelo menos que não basta ver as caras para reconhecer os corações. Não está em terra sua, por isso concilia, harmoniza, pede desculpas da intrusão.
- Quer beber um copo?
Assim a quente, ainda tomado de brios, o viajante está a pontos de recusar, mas aceita. Porque beber aqui um copo em sociedade é o mesmo que assinar um tratado de paz. Preferia um copo de vinho, mas acaba a engolir um Ricard espúrio, que uma mulher trouxe lá de cima. Sentou-se, com o anfitrião, no vasto palanquim de cimento que este construiu por cima da estrada, e ambos conversaram finalmente, com o vale da Ribeirinha em frente. Nos tempos antigos o homem era jornaleiro, fazia o que calhava, aí no campo. Nunca chegou a trabalhar nas minas, que sempre lhe faltou a terceira classe. Depois andou emigrado em França, a trabalhar nos batimãs, e viveu treze anos num autocarro velho, parado num beco de Champigny. Quando lhe chegou a altura, comprou tudo o que havia nesta rua e reconstruiu a casa onde vive. Faltam-lhe as duas casas velhas, que há dezassete anos não têm habitantes. Espera vir a comprá-las, quando os donos baixarem o preço.
- Um dia põe o seu nome na rua!
A sugestão não presta ao homem, que a rua já é dele. Das eleições da Europa pouco ouviu falar, e não lhe importam. A única revolução na sua vida foi a emigração. Na sua, e na de muita gente.
O sol já declinou atrás do monte, num poente suavíssimo. Mergulhado em emoções contraditórias, pudesse ele acrescentar o que por dizer ficou, e o viajante estaria de acordo com o seu anfitrião.