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Lá foram, os da Cunha, de mãos a abanar. Preservaram eles a inteireza do corpo, e foi restaurada uma paz que durou. Mas essa paz não enchia barriga, por pequena que fosse. E um dia o homem da Benvinda, e mais quem tinha dez reis de génio no corpo, nesta e nas outras aldeias do concelho, todos se fartaram da paz e das duas grandes fomes que tinham, que era a fome do corpo e a fome da terra. Lembrados do bom exemplo que lhe deixaram celtas e romanos, e mouros e visigodos, armaram-se de coragem guerreira, largaram daqui a salto e foram-se a invadir a França, à procura duma sorte melhor. Nessa altura ia o mundo civilizado já numa idade crescida, enquanto por cá se vivia numa infância rude, primitiva e mesquinha, coisas maiores não cabiam nas casas que já vimos. Os figurões que mandavam no país acabaram assustados com tal debandada. E foi então, em 1970, que algum senhor de autoridade, governador lá de longe, quis saber que povo era este que assim se punha a fugir, e mandou perguntar em que casas vivia, e de que faltas padecia, e quais eram os seus três maiores desejos. Reuniu a representação de Sebadelhe, que era formada pelo pároco Madeira, e um Pinto, regedor, e outra Pinta, que era a professora, e um senhor Cruz, presidente da junta. E todos depuseram que as casas são antigas na maior parte, sem iluminação nem o mínimo de condições; e que faz falta um pontão, para passar no ribeiro que divide a terra, e um depósito de água, que a leve aos fontanários; e que os três maiores desejos são uma escola, e uma estrada, e a electrificação, podendo ser. Logo foi superiormente considerado haver ali a mão de inimigos da pátria, celerados. Pois quem ousaria dizer, e de tão clara forma, que mais parece viver este povo num remoto sertão de África, parado no tempo dos afonsinos, entregue às leis da natureza como rebanho sem pastor. O mais certo é ter-se organizado em Sebadelhe um soviete vermelho, que tomou de assalto os centros do poder, para arruinar a pátria e destruir a nossa sociedade, cristã e ocidental.
Porém, a ser assim, logo se viu que andava o concelho todo tomado de assalto por sovietes vermelhos. Porque o de Aldeia Nova diz que a maioria das casas não tem condições para uma vida decente; em Carnicães e no Feital o panorama é péssimo e sem comodidades; na Castanheira é muito mau, em Freches é lamentável, em Moimentinha é outra vez péssimo, em Moreira, que é do Rei, é muito desolador, que faria se do Rei não fosse; em Souto Maior é primitivo e do pior, e muito bem vai ele nos Tamanhos, onde é apenas primitivo; já na Torre e nos Vilares é desolador, na Granja têm as casas aspecto de abandono e de desprezo, e na Cogula boa parte da população vive em tugúrios, de que ainda por cima paga renda.
Assim elucidado, mandou o governante arquivar numa gaveta os inquéritos em que se meteu. Ele não é nenhuma fada madrinha, e a vara de que dispõe não satisfaz desejos, muito embora tenha o seu condão. Há falta de recursos, toda a gente sabe como é pobre o país. Pois pobre andará ele, a quem o dizes tu! Mas o viajante crê que faltaram ao inquérito perguntas pertinentes, e pensa que é melhor fazê-las tarde, que não as fazer nunca. E à primeira será o que andou a fazer, em séculos, este povo, que é dono do país mais antigo da Europa, e nesta idade do mundo ainda não tem casas onde possa viver, não tem estradas para se deslocar, não tem água na fonte, a não ser de mergulho, não tem electricidade nem saneamento básico, esses luxos de mundos pagãos, e as ruas onde vive são de lama, para curtirem melhor os estrumes de inverno? E à segunda será onde nos ficou o país do rei Lavrador, que secava pauis, arroteava brenhas, construía castelos, e não se queixava de ser pobre? E à terceira se dirá onde foram parar os galeões da pimenta, com que nos aguçaram a cobiça, e as naus do ouro brasileiro, que nos corromperam o íntimo da alma? Que destinos foi que nos talharam, ou que fadários assim nos tresmalharam por plagas e sertões, a encher os olhos de sonhos, enquanto o europeu libertava o pensamento nas escolas, perseguia a ciência nas universidades, experimentava a técnica nas oficinas, e organizava a vida, e fabricava, e progredia?
O viajante deixa estas perguntas no ar, ao cuidado da história, é o que pode fazer, e não é pouco.
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