segunda-feira, 22 de dezembro de 2008

Portugalmente (10)

(...)
- De que vivem as pessoas aqui?
- A gente é muito pouca, as mais das casas estão vazias, durante o ano inteiro. Quem tiver umas terras deixa-as por cultivar, ou vai-as lavrando a tractor, para as ervas as não comerem. E tanto custaram elas a ganhar...
O viajante pensa que muitas vezes a vida é madastra duplamente. Como neste caso. Ontem sofriam as pessoas pela falta da terra, por quererem plantar uma couve e não terem um palmo de seu. Hoje sofrem porque a têm, sem lhe poderem valer. No geral são gente idosa, alguns trouxeram uma pensão de França, outros nem isso. Da pouca gente nova, há quem esteja a receber o rendimento mínimo, e alguns vão fazer lá fora as campanhas da fruta.
- Eu acho bem, o rendimento mínimo, mas devia haver outra fiscalização!
Quem assim pensa é a dona Blandina, mas nenhum dos presentes sabe distinguir os políticos que o criaram, daqueles que só o não levam à forca enquanto não puderem. Todos acham que foi na emigração que muita gente deu um salto na vida. E nenhum sabe explicar por que razão nunca houve, em toda a eternidade, mais que um caminho de cabras para ir ao mercado, e agora tem a gente uma estradinha que dá gosto, de fazer inveja a um lisboeta.
O viajante já se prepara para partir, quando entra um fulano atarefado a pedir uma cerveja em altos berros, parece que está zangado com o mundo. A locandeira bem lhe repreende os modos, mas ele continua a falar tão alto que é impossível ouvi-lo. Como se estivesse a conversar connosco, além do cimo da serra do Galgueiro.
O homem está muito apressado, porque tem que ir abrir uma cova no cemitério duma aldeia vizinha. Para um rapaz de mota, que vinha da casa das brasileiras, às quatro da manhã. E não viria muito mal cuidado, porque, a páginas tantas, os colegas olharam para trás e já o não viram, que já estava todo estrampalhado na valeta, ali à curva da quinta do Forcas, quando se vem de Trancoso. Ficam duas filhitas, uma mulher nova...
O viajante fica impressionado só com o pouco que lhe traduz a dona Blandina, por si não entendeu uma única palavra. O falador tem um ar estranho e visionário, faz lembrar uma figura qualquer, mas o viajante não sabe qual é. E só encontra a resposta quando sai do café, ao dar com um rocinante preso a uma carroça, com duas palhas em cima. O cavalicoque está tão magro que os ossos lhe vão furar a pele. Está tão abatido e cabisbaixo que parece não aguentar o peso da cabeça, e é de temer que se fine ali mesmo. Mas o dom quixote continua lá dentro a beber a sua cerveja, indiferente à sorte do companheiro, a contar as suas histórias inaudíveis, e a barafustar contra os moinhos de vento que há no mundo.
(...)