quinta-feira, 18 de dezembro de 2008

Dava-nos lições de filosofia e de fraternidade...


Ao Teórico, ao Naco, ao Jacinto, ao Dente Partido, ao Cavalo de Ferro, a todos!

De manhã levantávamo-nos às oito e vinte e cinco para a aula das oito e meia, apertávamos os botões no caminho e galopávamos por escadarias e vielas íngremes contra o vento aguçado que nos fazia esperas às esquinas, e nos mordia a porcelana rósea das orelhas. O maço dos cadernos abraçado ao peito baloiçava ao compasso do coração que nos trotava desenfreado, e só amainava depois de entrar na sala, antes que se esgotasse a tolerância da campainha despótica. Lá dentro a norma era a do livro único, e o saber era um testamento de verdades definitivas, a gotejar dos lábios pausados do mestre sobre a turma desatenta, perdida a imaginar a vastidão dos desertos de Gobi ou a violência do mar nas escarpas da Camecháteca.
Em Maio, quando voltava o sol que trazia ameaças de exames próximos, cortávamos em três a lombada dos compêndios, e passávamos os dias, de cadernos enrugados na mão, na passada mística de monges em retiro, a recitar a litania das revisões na estrada da Dorna ou nas curvas do matadouro. Nessa época mudava todos os dias a geografia do mundo, havia sempre o nome dum país novo a acrescentar no compêndio, riscai na página cem a colónia do Alto Volta, que passou esta noite a chamar-se Burkina Faso e tem a sua capital em Uagadugu. Mudava todos os dias a geografia do mundo, que estava simplesmente dividido em bons e maus e era menos incompreensível do que é hoje. Gentes e países maus eram aqueles que nunca se contentavam com o que Deus mandava, e passavam a vida a reclamar mudanças e transformações. Do lado dos bons estavam os que aceitavam a autoridade estabelecida e a ordem ancestral, e Portugal era o melhor de todos porque em Portugal nunca mudava nada, o povo ia cumprir as promessas a Fátima, os ministros limitavam-se a ministrar, os polícias policiavam, os doutores doutoravam, os pais faziam filhos e suavam, as mães sofriam e calavam, os trabalhadores deviam trabalhar e aos estudantes competia decorar os compêndios sublinhados, e sobre todos mandava Salazar, para Angola, rapidamente e em força.
Mas nem todos os professores se limitavam a professorar. Alguns sabiam deveras do que falavam, por isso eram homens tranquilos que vinham à rua sem gravata e passeavam connosco ao travesso da Praça Velha, a mostrar-nos que era vão o gesto de ajoelharmos na relva do Dom Sancho, a protestar de braços abertos, no ar, ali no meio da praça, como quem saúda Mafoma. Ou o gesto de assistirmos, perfilados, aos domingos, à saída da missa da Misericórdia, em guarda de honra à passagem das matronas que ameaçavam romper os espartilhos, ou das meninas que disfarçavam sorrisos, embrulhados em véus de catequista. Pena é que poucos fossem, os tais professores, pois eram tolerantes com os guinchos da campainha despótica, e até às vezes saíam do deserto do compêndio para falar connosco doutras coisas mais urgentes da vida.
Nós não sabíamos nada do mundo, que era nessa época mais agreste e menos incompreensível do que viria a ser, limitávamo-nos a vê-lo à distância a que estava duma cidade ainda mais remota do que é hoje, e bem mais acanhada e submissa. Sentávamo-nos às tardes no café Monteneve, que era o café dos doutores, estava quente lá dentro e tinha painéis de azulejo com pastores e cães da serra, discutíamos os dramas do João Barois – se o universo, a natureza, o nosso próprio corpo não é senão um campo de batalha onde se confrontam miríades de células, como pode a sociedade dos homens ser diferente e estática, ou que vamos nós fazer deste absoluto dogmático dum deus imóvel e cristalizado? – líamos Walter Scott e o Cavaleiro Andante, jogávamos xadrez à procura duma nova saída de cavalo, construíamos textos à volta dum desenho improvisado numa folha e fumávamos cigarros Impala, que o Zé Corno vendia a três por cinco tostões. À noite, nos filmes para adultos, íamos ao cinema com cédulas de amigos mais velhos, e lançávamos gatos do alto das muralhas, para comprovar se caíam de pé. No Regalo do Boi cozinhavam-nos de borla uma galinha quando entregávamos duas, era tarefa a dobrar nos quintais do Torreão, mas sempre havia alguém que soubesse resolvê-la a preceito. Havia quem estudasse hipnotismo por correspondência, o manejo de forças misteriosas abria na verdade passagem para outros mundos, e o Zé Fernandes deu mesmo um passo gigantesco nos territórios do oculto, quando recriou, misturando mezinhas com elixires de droguista, a mágica alquimia que reduziria a mel o coração das colegas de Letras. Trazia ali a fórmula no bolso, dentro dum frasco de vidro, ao menos ficou explicado o fedor medieval que irradiava do rapaz.
Nós não sabíamos nada do mundo, apenas achávamos incómoda aquela espécie de silêncio de claustro, e suspeitávamos com vaga intuição de que havia em tudo uma outra história a desvendar. Tínhamos ouvido falar no saber e no livre pensamento, que transforma cada súbdito num cidadão, e acreditávamos piamente nisso, ainda não chegara o tempo das dúvidas e das desilusões. Trotávamos como gamos pela avenida das tílias na direcção do parque, o colégio das freiras era uma fortaleza com janelas que nunca se abriam, povoada por donzelas que viviam no maior recato e que nós considerávamos prisioneiras. As nossas emoções afectivas fervilhavam em circuito fechado, a turma só tinha rapazes e tudo o mais era um grande segredo. Discutíamos estas coisas caminhando nas veredas de saibro, na altura era toda a encosta uma grande mata de abetos, e um dia alguém encontrou num recanto os restos da donzelia de uma dessas prisioneiras, resumidos a uma esfarrapada peça íntima. Logo alguém arriscou identificar o fauno, e constou que era conhecida a pecadora. Porém, se a espinhosa verdade nos ia resistindo às investigações, muito mais duro, empedernido e encrespado se havia de mostrar o coração da velha madre directora, insensível como foi à carta que lhe enviámos a defender a causa da pobre madalena, caída neste lance por tão terreno momento de fraqueza. Nunca a retórica dos bíblicos exemplos foi tão inválida e vã, aquele de entre vós que não pecou lance a pedra primeira, nem o anjo da espada de fogo teria sido mais casmurro. Ainda não tinha passado uma semana, já a arguida estava expulsa da prisão.
Um dia a universitária marcou-nos encontro no café. Chegava de Coimbra, mais que todos, para nós, um lugar mítico. Era uma bela estampa de mulher, e calçava umas botas que geraram em nós persistentes fixações fetichistas. Foi ela que nos trouxe, repetidas vezes, notícias da contestação que agitava a universidade, e nos confirmou a suspeita de que o mundo era um lugar inquieto, e nos fez tomar consciência de que ninguém podia dar corda às pessoas e deixá-las a tocar pratos toda a vida, como bonecos de feira. Nós fazíamos uso ostensivo da sua companhia, passeávamos com ela pelas praças como quem exibe um troféu, a sua atenção, afinal, dava-nos estatuto e significado, pensávamos nós. Ela aceitou claramente a vassalagem, estamos para saber quem tirou deste arranjo o proveito maior.
Terá sido dos seus incitamentos que nasceu O Riacho, quem poderá agora deslindar este caso, ela dizia que era preciso romper os espartilhos e agir, o mundo estava aí à espera de que os homens o moldassem. E nós, que ainda hoje não sabemos ao certo se isto é verdadeiro, encontrámos no saudoso Francisco Pissarra a mão que nos assegurou ser possível. Ele tinha aqueles sapatos de sete léguas, abertos, ao andar, como um relógio às dez para as duas, dava-nos lições de filosofia e de fraternidade, e estendia-nos o garrafão da aguardente quando fazíamos serão lá em casa, noite fora. Dizia-nos que um dia haveríamos de rir do que então escrevíamos, mas que tudo estava certo, no momento. O Orlando Bernardo, que era tão grande de corpo como jeitoso de mãos, gravava a canivete no linóleo as ilustrações não figurativas. E nós voltámo-nos para a produção de textos que haviam de encher as oito páginas, desafiámos outros colegas, aceitámos a iniludível tutela da Mocidade Portuguesa que pagaria as custas previsíveis, levávamos os textos à velha tipografia de chumbo, catávamos as gralhas nos linguados de provas, alinhávamos a composição das páginas, recebíamos o jornal, organizávamos a distribuição, mobilizávamos amigos para a venda, e esgotámos a primeira edição com oitocentos exemplares a dez tostões. Desses ficou uma centena no seminário maior. O velho cónego reitor recebeu-nos a embaixada com empedernida prudência. Após vasto concílio, passou-nos para a mão uma nota de cem escudos e guardou os cem jornais, por certo uma ímpia vassoura acabou a varrê-los para o caixote, vá-se lá saber agora.
Nós ainda hoje não sabemos se o mundo é transformável, já todos vivemos uma coisa e o seu contrário. O que sabemos é que as pessoas o são, pelo que fazem. Foi isso que O Riacho nos mostrou.