segunda-feira, 25 de janeiro de 2016

Floreados

O palestrante vem da universidade da Covilhã para falar de "Vergílio Ferreira no século XXI" e é um privilégio ouvi-lo: discurso oral fluente sem improvisações, boa dicção, muito saber e um pensamento ordenado. Muito se aprende com ele, mesmo quando se discorda. E aquilo que mais nos falta é uma boa polémica, embora não pareça.
O palestrante não disfarça a sobrevalorização do pensamento precursor, quiçá visionário, de VF, enquanto autor. Está a falar de literatura, mas omite que oitenta por cento dela é a  linguagem e as formas, e as suas malas-artes narrativas. Antes do pensamento e da reflexão (domínios do ensaio), é da linguagem que a literatura é feita.
Na opinião do palestrante, "obras como Manhã Submersa (1954) ou Aparição (1959) assumem já uma perspectiva existencialista, bebida em Dostoievsky, Sartre ou Malraux - o próprio VF  dizia que Eça de Queirós o ensinou a escrever e o autor de A Condição Humana o ensinou a pensar. (...) Se os seus romances de ideias - com personagens que discutem a missão da arte, a função do intelectual ou as grandes questões com que se debate uma condição humana desapossada de Deus - o tornam um caso à parte na ficção portuguesa, é ainda mais invulgar o modo como essa dimensão reflexiva, pensante, se cruza com uma escrita de forte dimensão poética."
Não admira que VF seguisse por então os modelos franceses, que eram há muitas décadas o alimento indígena. Só que esse gesto era um anacronismo. Os criativos do nouveau roman, os surrealistas, os existencialistas e outros teóricos formalistas da morte de Deus, do homem e do autor, frutificavam numa cultura que levava cem anos de avanço sobre a portuguesa. Em 1960 a sociedade portuguesa vivia ainda na medievalidade do ancien régime. As consignas estéticas e sociais duma literatura digna desse nome constavam da escola neo-realista, de que VF se afastou.
Daí a polémica com Alexandre Pinheiro Torres, que considerou obnóxio um romance como Estrela Polar (1962), passado em Penalva (a Guarda), onde todas as personagens se entregam às mais sofisticadas reflexões. "Toda a gente filosofa em Penalva, transformada em cave existencialista da Serra da Estrela". Nem surpreende que um Baptista Bastos menos paciente tenha ameaçado ir às fuças a VF. 
Na arte em geral, e na literatura em particular, é como na vida: cada coisa a seu modo e a seu tempo. Fora disso há floreados.
(Continua)