segunda-feira, 6 de junho de 2016

Tarde sabática, a fritilária, um gato e o rabo dele e a poesia experimentalista

Aproveito a tarde plácida e vou visitar a fritilária, há-de ser o tempo dela. É uma florinha que há anos conheci num recanto da Serra, perto do vale do Rossim, encontrou-a uma amiga brandeburguesa, aqui há anos atrás, com a sua invejável cultura da natureza e das botânicas dela. Quando a fritilária floresce e abre ao sol, mostra em cada pétala a filigrana dum tabuleiro de xadrez. Desde então esse recanto tornou-se-me lugar de romaria anual.
Foi assim que fui parar a Gouveia. As casas do Toural já não existem, nem a compota das framboesas que lá havia. Percorro toda a vila, não encontro lugar para estacionar, paro o carro em cima dum passeio que tenho mais que fazer. O panzer é pesado e já está velho, ninguém o quer para nada salvo o dono. E atrás de mim pára outro, que se põe à minha espera de janela aberta.
- Sou filho dum grande amigo seu, companheiro doutros tempos, falava muito de si. Vi-o lá atrás e queria-lhe falar. Agora moro aqui mas sou açoreano. Lembra-se do nome dele? -Pergunto e ele não mo diz, prefere dar-me tempo a recordações.  
O rapazola tem um sotaque exótico, dos Açores ou da Madeira, não sei bem. Não o  encontro nos arquivos mas tem sotaque de ilhéu sem fingimento.
Vem-me à lembrança a ilha de São Miguel, há uns 40 anos. E há mais anos ainda lembro-me da Bissalanca, como poderia eu limpar esses impérios da memória, se nos custaram tanto a edificar?!
- Então lembra-se do meu pai, do nome dele? - insistia o rapazola. E eu acabei por arriscar-lhe o Pavão. 
Tinha-o conhecido em Tancos, em setenta, onde fui parar ao fim dum ano de hospital. Estilhaços que sobraram dum acidente brutal que eu tivera no Congo, porque o império era vasto, ainda que mais pequeno que a loucura lusitana. Adiante! 
E o Pavão, chegado da Bissalanca, contava-me as aventuras do Caco, esse lendário general do monóculo. O Baldé (Caco Baldé) sabia que as morteiradas do Nino Vieira enterravam mais o prato na lama das bolanhas, sempre que disparavam. E ele, de cabeçorra ainda cheia das lições do VI Exército na batalha de Stalingrad, descia dos helicópteros no meio dum sertão, via onde caía a primeira granada, a próxima já não cairia ali. Por isso era destemido, de pingalim nas unhas, um padrão de pedra à frente das suas tropas, que haviam de pacificar a pretalhada. O Caco não pacificou ninguém com os seus congressos do povo, acabou por desistir, regressou a Lisboa e foi ao Marcelo demitir-se do cargo de César dos Bijagós. Mal sabiam nessa altura, o general e o Pavão, dos mísseis terra-ar que estavam para chegar, e abatiam aviões atrás dos infra-vermelhos como quem caça pardais!
O Pavão acabou o serviço militar e regressou aos Açores, onde foi voar na Sata. E eu fui mobilizado para a Bissalanca, onde assisti às exéquias dum império a fingir. E só voltei a Lisboa depois do 25. Em 1975 fui passar uma semana a São Miguel, onde revi o Pavão e conheci aqueles Pavões todos, uma gente encantadora. O rapazola que estava ali à espera no carro das argolinhas não existia ainda, nem as esperanças dele. Mas afirmava que se lembrava de mim, e das conversas do pai, e viera atrás de mim, na tarde de Gouveia, pois tinha que me falar.
- Era o Pavão! - disse-lhe eu. Pedi-lhe um par de minutos, atravessei a rua, encostei-me à parede e desabei por dentro. Por fim voltei a ele, que me contou o resto. O pai já tinha morrido, e ele viera de França onde esteve a trabalhar, para alargar em Gouveia uns negócios da empresa: chinoiseries, decoração, artefactos do lar, eu sei lá bem! E estava ali, a falar micaelense! Perguntava muito pelos meus netinhos, que ele nunca viu, apenas imaginava.
À despedida meteu-me no carro umas ofertas da empresa, que queria entrar no mercado. Atoalhados, felpos vulgares, uns espanhóis e outros portugueses, cujos lavores  medíocres ele enaltecia. Sublinhava-me o preço das ofertas, e à terceira deu-lhe um valor absurdo. Se eu pudesse oferecer-lhe metade desse valor, para ajudá-lo a pagar o aluguer do carro, pois era um encargo seu...
Senti-me empurrado para um negócio delirante, astucioso. Já me defrontei com paranóias estranhas, é um exemplo. Porém aqui não encontro entorses clínicas. Quando muito há um delírio utilitário, pragmático, uma armadilha para me extorquir uns trocos. Divido em três o valor que o rapazola me pede, mas tenho que passar pelo multibanco. É a gentileza dele que me leva lá, que o panzer fica a dormir. Levanto a massa, entrego-lha e despedimo-nos.
Entendamo-nos agora. Não tenho cá dentro o bicho do cinismo nem o quero, a alma recusa-me esse veneno que uns tipos avisados chamam bálsamo. Olho para os outros com olhar humano, imagino-lhes os dramas pessoais, já tenho caído nalgumas esparrelas. Só posso ver-me assim... às vezes no papel do trouxa. E lá vou à procura do almoço, porque tenho que ir ver a fritilária à Serra. Tenho infinitas probabilidades de estar perante o enigma do gato escondido com rabo de fora. Sinto nas mãos o rabo do gato, sem saber onde é que o gato está escondido. Não contava com uma tarde assim atribulada, com estas emoções e enigmas à solta.
(Continua)