domingo, 19 de junho de 2016

Lua Cheia (ou quase)

Gasto a manhã toda na horta, em tarefas que a estação tornou urgentes. Fiz metade de quanto tinha a fazer. E a horta sabe já que perdeu a guerra do meu tempo, mas aproveita o sol e barafusta.
E mais aproveito eu, uma das poucas vantagens destas tecnologias. De auriculares nos ouvidos, meto o telefone no bolso e oiço rádio. Poupo tempo (que é dinheiro ou outra coisa parecida) e jogo uma simultânea em tabuleiros vários. Bingo, pois!
Foi assim que dei comigo a ouvir, na antena 2, uma conversa entre o radialista animador e uma académica de voz ainda juvenil.
Não duvido, por um segundo, de que há por aí historiadores ilustres, mesmo os novos, conhecedores, de alforges cheios de invejável e profícuo saber. Mal feito fora! Só não entendo por que terá o radialista escolhido para a conversa de hoje  uma académica assim. Só pode ser porque ele a equivale em atributos. Bem parece!
Anda aí a paisagem cheia disto. De doutorados juvenis, que aprenderam uns papagueios no anfiteatro duma faculdade de Letras, e não sabem, que não podem, fazer mais que repeti-los. Escrevem um livrinho sobre uma rainha, arriscam às vezes um romance histórico. Acabam a dar lições e a difundir exponencialmente a ignorância de que sofrem.
A conversa de hoje ocupa-se da ínclita geração, essa esquina culminante, a das opções decisivas. Ir ao mar tenebroso ou deixar de ir, ir a Marrocos pela fé, à Mina pela escravaria, à Índia pela canela e a pimenta. 
O infante Navegador, dono da ordem de Cristo e dos tesouros templários, manobrava para ir ao mar.
O infante dom Pedro, duque de Coimbra e regente do reino na menoridade do rei Afonso V, recalcitrava, a hesitar... 
Depois veio o desastre de Tânger, e um infante que chamaram Santo, para lhe limparem as lágrimas de cativo sacrificado, e um rei Duarte melancólico, pusilânime e enfermiço, e a intriga de Alfarrobeira, e dom Pedro atraído à ratoeira e enterrado na campa rasa de Alverca, antes de lhe darem mausoléu mais ajustado, um rei Afonso juvenil, nas mãos da fidalguia e dos Braganças...
A académica de voz ainda juvenil vai explicando aquilo tudo como pode e como sabe. Não conhece o pensamento dialéctico, muito antigo; não raciocina sobre as contradições e os jogos de poder, tudo acontece na vida e nas sociedades por acção dum deus-ex-maquina. Ao resto chamará anacronismos errados, que um historiador não comete. 
Nem usa no seu discurso essa figura do príncipe das sete partidas, o infante que fez o seu grand-tour e correu meia Europa. Que encontrou e aprendeu ideias novas, nas cortes, nas políticas, no pensamento, na religiosidade. Que saiu de cá na treva medieval e voltou no amanhecer do Renascimento, senda aberta ao que era novo e havia de ser futuro.
A ínclita geração acabou dizimada pelo Navegador do chapeirão, o único a lucrar naquilo tudo. Cinco séculos depois, pagámos nós a factura, vinda num correio histórico, muito antigo. Quem assistiu à chegada do carteiro foi o Alfredo Cunha, que o fotografou a la minuta.
[Adenda: À tarde vou à cidade e passo na livraria.
1 - O Livro, de Zoran Zivkovic estava lá na Bertrand. É uma novela em que o livro é protagonista. Começa assim: 
" Não é fácil ser um livro. (...) Ninguém com um mínimo de inteligência pode negar que, além da humanidade, nós, os livros, somos os únicos seres inteligentes à face da Terra. (...) E poderiam eles (os humanos) passar sem nós? Deus nos livre! Sem livros, qual seria a condição da raça humana? Continuariam a arrastar-se no mesmo estado, primitivo e miserável, em que os encontrámos quando aparecemos, há cinco mil anos: uma espécie conhecida pela sua capacidade de esquecer mais rapidamente as coisas do que as memorizar. Não estivéssemos nós à mão para oferecer a nossa abnegada ajuda na tarefa da memorização, não tivéssemos nós memorizado em seu nome, esses pobres seres não teriam qualquer história. Teriam esquecido praticamente tudo. E como poderia alguém apresentar-se como um indivíduo inteligente, se não recordasse o seu próprio passado, incluindo o passado recente? (...) ".  Meto O Livro no bornal e pronto! De passagem regozijo-me por ver no escaparate o Haja Luz!, do prof. Jorge Calado, em 3ª edição. Custa quase 50€, mas vale bem mais do que isso, e do que umas férias nas Caraíbas!
2 - No parque de estacionamento encontro à frente do panzer o focinho imponente, descomunal e assustador dum BMW multipurpose. Assusto-me e aterro-me e pergunto-me: - Será que os portugueses já compravam coisas destas, antes de os levarem ao cheiro das canelas, há quinhentos anos?
3 - Telefono a um amigo que vive longe, a perguntar se posso almoçar com ele na 2ª feira. Diz-me que não, nesse dia tem almoço previsto com a vaca sagrada. É o prof. Eduardo Lourenço, de São Pedro do Rio Seco, sobretudo agora que o levaram para o conselho de estado.
Sempre a ironia nos foi um salvamento, sempre certeira e mordaz, sempre fatal.]