domingo, 24 de abril de 2016

Freixo

Chego lá depois de muito rodar por estradinhas modernas, que das antigas nem me quero lembrar delas. E encontro nele uma tarde serena, placidíssima. Já em tempos pernoitei no local onde me alojo, que encontro modernizado. Por este preço o quarto é de cinco estrelas, de seis seria com a estalajadeira. Mas isto é um pensamento solto e reservado.
As ruas que então havia eram um estaleiro de obras, com nuvens de poeirada. Hoje é um gosto andar nelas, atravessar os largos e as pracetas, encontrar nelas as marcas semitas de judeus homiziados. As andorinhas, essas, andam numa azáfama em roda dos beirais, indiferentes aos alpendres de madeira e às nossas escuridões.
Num mural estão reproduzidos versos excessivos de Abílio Guerra Junqueiro, de há um século e meio. Copio-lhe o mais pagão, que não conheço.
"Uma manhã Júpiter apareceu-me em Barca de Alva
e disse-me, pondo a mão familiarmente no meu ombro:
- Queres fazer um poema homérico?
Vês esta terra selvagem?
Rasga-a, ergue-a de socalcos!
Planta-a de vinha!
Dar-te-ei o sol para casar com ela!
Ingénuo e deslumbrado, lancei-me ao trabalho.
Um dia, anos mais tarde, Júpiter voltou.
- Belas cepas, Abílio!
- Cem mil, senhor Júpiter!
- Cem mil versos de ouro!
Fizeste o teu melhor livro!"
E vou recolher-me cedo, que amanhã há Calçada de Alpajares.

Adenda: Este Freixo ensinou-me hoje esta coisa: mais que a dum prosador ou um romancista, a obra dum poeta só pode ser vista no seu tempo e no seu lugar. É só aqui que o Guerra Junqueiro ainda está vivo.