terça-feira, 5 de maio de 2015

Porto

É domingo e são nove da manhã, a noite foi uma corda de água permanente. Mas saio da messe da Batalha de peito feito, disposto a enfrentar o dragão.
Na leitaria da esquina a rapariga alinha no passeio as cadeiras da esplanada. Não tem café, que a máquina ainda está fria. Já na descida da 31 de Janeiro os algerozes transbordam, e os beirais inundam as calhas do eléctrico. Mas eu tenho que chegar ao metro de São Bento. Tenho que ir mudar o penso à mão esquerda, que anda sujo e já me faz comichão. Preciso dum enfermeiro, na urgência do hospital da Boavista.
Este penso é o que me sobra dum exame com contraste, que há dias fui fazer ao hospital. O desgraçado enfermeiro deixou-me a agulha de entrada fora da veia. De forma que o contraste lá entrou e acumulou-se no punho. O resultado foi um hematoma (que me fez ter pena da mão esquerda) e a pele queimada pelos ácidos do líquido.
Saio da estação da Michaelis e dou com o nariz na porta. Aos fins de semana não há urgência no hospital militar, porque as próprias guerras param nos feriados! E eu dirijo-me ao hospital dos Lusíadas, um privado do outro lado da rua. Um enfermeiro resolve-me o problema, com um unguento que já levo no saco. No final assino uma factura de 87 cêntimos, que os serviços vão apresentar à ADM, o meu sistema de assistência na doença.
Trata-se agora de regressar à Batalha e à messe dos almirantes. Ainda me falta um café, mas não há estanco aberto. O Centro Comercial da Boavista está fechado, e também os ATM da Caixa, que há três dias encontro indisponíveis por toda a cidade. Mas tomo finalmente o cafezito ali ao Bom Sucesso, no Centro Peninsular. E continuo até ao Campo Alegre, onde passa um autocarro que me há-de levar a São Lázaro.
Pela rua há sotaques castelhanos, e sobretudo franceses. Muito me apraz ouvir a língua do Voltaire, que desapareceu do mundo! Só pode ser da vergonha que os gauleses ainda sentem, e do papel que perderam, desde as traições do Pétain e dos colaboracionistas de Vichy.
Na paragem desesperam uns franceses que vieram na Easyjet e querem ir a São Bento, porque vão para Guimarães. Outros andam a ver se chegam ao aeroporto, talvez furem a greve dos pilotos. Passa um bando de silhuetas negras e fazem-me lembrar os corvos do van Gogh em dia de tempestade nas Arles. São estudantes da queima das fitas, vão ter a bênção das pastas, e o cortejo das alegorias, e a celebração anual da idiotice e da imbecilidade, que já ontem começaram. Por isso é que a polícia interditou o centro da cidade, não há trânsito para lá da praça da Galiza, e os autocarros não passam.
A chuva cai, e o guarda-chuva chinês abre-se mas não se fecha. E se fecha não segura. Apetece-me atirar com ele ao lixo mas custou-me uns bons dez euros. E a chuva continua a desabar. Um táxi era a solução. Mas os que passam vêm ocupados, e os que não passam alinham-se nas paradas, à espera de passageiros. E eu decido-me a voltar à Michaelis, onde o metro me há-de levar ao Bolhão.
Passo outra vez no Bom Sucesso, chegam-me à rua os cânticos devotos dum culto adventista. E uma récua de Ferraris dormita numa vidraça, faz-me lembrar uma rua em Roterdão. No Bolhão, outra excursão de gauleses mostra ao ecrã da máquina de entrada a cartolina do Andante. A máquina dá luz verde e manda entrar. Eles é que parecem não saber que o cartão é pessoal e único. Logo que o seu dono entra, dispõe duma hora inteira para se deslocar, sempre com a mesma viagem. A máquina só cobra outra depois de esgotada a hora.
Mas a rapariga do guichet não sabe uma palavra de francês, e não lhes explicou o pormenor. De forma que eles activam a máquina uma dúzia de vezes, com ela a acenar que sim. Mas só o primeiro viajante é que pagou a portagem. Eu vou-me embora e mando-os passear.
Desço a Santa Catarina e a rapariga da esquina já tem a máquina em ordem e serve-me um café, que me ajuda a passar o resto da manhã. Na messe dos almirantes já dispo a roupa encharcada. Visto as calças do pijama a fugir do resfriado, a ver se enxugo os canudos das calças. Mal sei eu que o portátil de halogéneo, a única coisa quente que ainda existe, está fora de serviço e não aquece.
Passo o resto da jornada em abstinência, a preparar um exame com coloração que amanhã cedo me espera. O exercício de me lavar por dentro vai ocupar-me até à meia-noite. E é tão desagradável e penoso, que além de vazio me vai deixar esgotado. Os deuses hão-de manter-se pródigos comigo.