quinta-feira, 21 de maio de 2015

A anoneira

Na sala das visitas havia dois retratos. Um era do grande peito duma dona Emília, que trazia uns cordões de ouro a escorregar do pescoço. O outro era dum senhor antigo, um Manuel Maria com um garruço na cabeça. Muito sisudo, por cima dum cadeirão de palhinha. 
A um canto dormitava uma caixa de madeira, com uns pés amarelos de metal. Levantávamos-lhe a tampa, só para ver os dentes que tinha lá dentro. Eram macios e brancos e pretos, e dois ou três já lhe tinham caído. Se carregávamos num deles, a caixa logo tocava. Mas só fazíamos isso quando estávamos sozinhos. 
No quintal havia árvores que não eram como as outras, e frutas que ninguém tinha, e flores que levavam às cestadas para enfeitar as capelas dos santinhos, e águas que vinham da mina, e pintassilgos nos buxos. Mais tarde fui descobrindo a muita sabedoria que havia naquilo tudo, e acabei mesmo a entender que a mim me matara a fome.
Há tempos vim a saber que tinha havido na horta o tronco duma anoneira, e só então lhe cheguei às raízes. Eram restos dum Brasil de há uns duzentos anos.
Não fora ele perdido, não seria um paraíso. Ainda bem que se perdeu.