domingo, 17 de maio de 2015

Papinha feita

Num exercício de cultura pura e dura, FL editou um conjunto de Crónicas de utilidade pública. Lê-las devagar e conhecê-las é só ganho.

« (...) Para percebermos qual é a melhor maneira de viver a nossa vida, consultemos antes esse maravilhoso texto acima referido, da tradição hindu. Ora a Bhagavad Gita diz-nos muitas coisas surpreendentes e desconcertantes, mas nenhuma, no meu entender, é mais surpreendente do que esta: o essencial, na vida, é arredarmos de todas as nossas acções o proveito próprio. Nada do que empreendemos, nada do que fazemos deve ter como objectivo o nosso próprio benefício. Pelo contrário, tudo o que fazemos deve ser feito tão-somente pelo valor intrínseco da acção em si.
A minha própria experiência de vida tem-me ensinado de forma muito pragmática que nada nos dá uma sensação tão agradável como empreendermos uma tarefa cujo benefício irá reverter a favor de outrem. Por outro lado constatamos tantas vezes que acções empreendidas com base numa expectativa de proveito próprio acabam por não redundar em nosso benefício. Na verdade, todas as acções que empreendemos para beneficiar os outros, em vez de nos deixarem de mãos vazias, deixam-nos mais ricos, pois é delas que advém a felicidade mais pura. O tal amor que (segundo o estudo de Harvard) nos traz mais felizes é justamente aquele que nada pede em troca.
Como complemento à fórmula da felicidade proposta pela Bhagavad Gita, poderíamos ainda compulsar o indispensável Mundo Como Vontade e Representação de Arthur Schopenhauer, e determo-nos um pouco no capítulo 38 do Livro III.
Segundo Schopenhauer, aquilo que nos leva a agir em proveito próprio é a vontade. "Todo o querer", escreve o grande filósofo, "advém da carência, portanto do sofrimento". A sensação de carência - esse abismo hiante dentro de nós mesmo - leva-nos a procurar realidades e circunstâncias que a mitiguem; mas cada vez que satisfazemos um desejo (...), damo-nos conta de que ficaram no mínimo dez desejos ainda mais vorazes por satisfazer. As nossas necessidades e desejos canibalizam-nos. O sentimento da sua satisfação é evanescente e ilusório. Sob esta perspectiva, agir em proveito próprio nunca nos traz a saciedade, nunca preenche um único milímetro cúbico que seja, do vazio de carência devoradora com que viemos ao mundo. (...)»