sábado, 18 de abril de 2015

Jagodes

A criatividade popular no capítulo das alcunhas não reconhece fronteiras. E é tão proverbial quanto é cáustica. Mas aqui não é de alcunhas que se trata. Antes de um sobrenome comprado por bom dinheiro, num tempo em que havia condes verdadeiros.
Gastava ele os dias no solar, ainda ganapo. Cumpria as ordens da criada na cozinha, fazia companhia ao jardineiro, tirava as ervas ruins enquanto matava a fome. Mas nunca esteve no salão do preto, nem de longe. Essa figura de pau que atestava heróis já mortos em campanhas de além-mar, e era um padrão de memórias nas casas afidalgadas.
Um dia o conde, que descera ao parque, acenou de longe e disse: - Olha lá, Jagodes! Compro-te o nome por estes vinte escudos! Pega neles! - E o rapazito, que nunca vira dinheiro, deixou a assinatura no contrato ao receber da nota.
Um nome tal vinha de muito longe, da terra dos bolcheviques. E o seu verdadeiro dono foi comissário do povo e mandava nas polícias todas. A circunstância não o impediu de acabar fuzilado, mas o próprio conde ainda o não sabia, ele que sabia tudo. E assim ficaram as coisas muito tempo.
Um dia o Jagodes fugiu a salto para a França. E viveu mais a mulher à beira dum bidonville, dentro da carcaça dum autocarro velho, durante uma dúzia de anos. Até que arranjou lugar num acheléme. Quando regressou a Portugal definitivamente já trazia o nome antigo, deixara de ser um jagodes qualquer. Tinha comprado uma casa de família, que reconstruiu e salvou da ruína, com um quinteiro melhor do que o do conde. É onde vive ainda hoje. 
Mas tem as suas mazelas, porque padece da gota e os filhos estão muito longe. Se ele encontrasse a quem vender a casa e o quintal, e as japoneiras que há nele, e as águas boas que tem, esqueceria o passado, largava tudo e ia ter com eles. Não hesitava um minuto.