terça-feira, 28 de janeiro de 2014

O último maçaricão-esquimó 7

(Cont.)
         O ponto alto do ciclo de actividade das glândulas acabava de ser ultrapassado. A produção de hormonas era cada vez menor, e com ela desaparecia lentamente o impulso de acasalamento e a agressividade. Em seu lugar veio uma outra necessidade. Dantes era a defesa da reserva o primeiro mandamento, mesmo mais importante do que a busca de alimento. Agora começava a sentir as primeiras manifestações de impulso para o movimento que não se calava. Nenhuma fêmea viera, e a reserva perdera significado.
            De vez em quando observava a tarambola-dourada, mas ela não se ia embora. Acabou por deixar de se preocupar com ela e esqueceu-a. Durante um dia deambulou por ali. Às vezes dava-se conta dos intrusos que lhe penetravam na reserva, mas logo os esquecia. No dia seguinte outras narcejas chegaram à reserva. Chegavam e partiam, e o maçaricão não lhes ligava qualquer importância. Uma vez voou mesmo um bom bocado pelo rio abaixo, e ficou longe durante um par de horas. Foi a primeira vez que deixou a reserva, desde a sua chegada, há dois meses atrás.
            À sua volta as narcejas novas cresciam rapidamente. Os pais abandonavam-nas e elas tinham que fazer pela vida. Era uma separação brusca e total. Pais e filhos formavam, cada um, o seu bando migratório.
            Chegou o fim de Julho. O pântano fervilhava de insectos e crustáceos, que eram o alimento das narcejas. Havia agora alimento em demasia, e faltavam ainda alguns meses para ao inverno. Mas o Árctico já tinha cumprido o seu papel. E o Sul chamava insistentemente, semanas a fio, antes que os bandos de facto se pusessem a caminho. O maçaricão, que durante todo o Verão lutara furiosamente por ficar sozinho, ansiava agora por companhia. Isso nada tinha que ver com o pensamento ou com a inteligência. Ele reagia simplesmente ao primitivo modelo de comportamento da espécie, às alterações do ciclo fisiológico. Os dias eram cada vez mais curtos, o sol cada vez mais fraco, e com isso reduzia-se também a actividade da hipófise. As hormonas da hipófise estimulavam as gónadas a derramar hormonas sexuais na corrente sanguínea. E agora, ao reduzir-se a produção de hormonas sexuais, desaparecia o agressivo impulso de acasalamento, substituído pelo instinto migratório. Era apenas um processo fisiológico. O maçaricão não tinha consciência de que o Inverno ia chegar ao Árctico, e de que morreria à fome quem se alimentava de insectos e ali permanecesse. Ele conhecia apenas a irresistível força que agora o obrigava a migrar.
            Porém, algures no seu cérebro rudimentar, esboçava-se um processo de pensamento elementar. Por que razão estava sempre sozinho? Onde paravam as fêmeas que o seu instinto lhe prometia em cada primavera, quando o fogo nupcial ardia em todas as suas células? Nesta altura, as outras aves juntavam-se em bandos migratórios. Mas por que motivo não havia, entre as miríades de narcejas e outras espécies de maçaricos, nenhuma outra com a penugem castanha clara, que ele prontamente reconheceria como irmã de casta?
(Cont.)