domingo, 19 de janeiro de 2014

O último maçaricão-esquimó 4

(Cont.)
O maçaricão voou em círculos cada vez mais altos, e o seu canto nupcial tornou-se mais repetitivo e urgente. Subitamente parou, e o seu canto transformou-se num grito febril. Lá longe, a montante do rio, mancha castanha no céu acinzentado, voava uma outra ave em direcção ao Norte, e o maçaricão reconheceu-a como membro da espécie. Esperou, pairando sobre a reserva, em círculos cada vez mais apertados, e a ave aproximou-se. A fêmea vinha aí. Os três verões que o macho passara sozinho, esperando em vão, eram uma lembrança vaga e desagradável. Mas agora ela desaparecera do seu cérebro, tão poderosamente determinado por reacções instintivas que apenas restava um pequeno espaço para a memória e a reflexão. O instinto dominava-o completamente, ao elevar-se na espiral do voo nupcial, não já com as batidas de asa habituais mas esvoaçando como uma borboleta. Chegado ao ponto mais alto deixou-se cair de novo, silvou de encontro ao solo, recuperou baixo sobre a tundra e voltou a subir.
            A outra ave escutou-lhe o grito selvagem, mudou de direcção, veio velozmente ao seu encontro. Obedecendo instintivamente às leis da reserva, que todas as aves conhecem, a fêmea poisou numa rocha musgosa, situada um bom pedaço fora da reserva do macho. Excitado, ele ardia em paixão. Numa sequência rápida efectuou ainda várias danças, subiu no ar ruidosamente até desaparecer da vista, desceu de novo em picada violenta, e de cada vez quase roçava o solo. Durante alguns minutos a fêmea alisou as penas, indiferente, sem dar atenção a tais demonstrações amorosas. Depois correu e voou sobre o terreno, alternando batidas de asa com passadas febris. Entrou na reserva e agachou-se, submissa, ao chegar perto do macho. Este soltou um assobio estridente e subiu na vertical para um último voo, pairou lá no alto sobre ela, deixou-se cair como um meteoro e poisou a cerca de dois metros de distância. Ficou parado por um momento, eriçou as penas, esticou o pescoço e caminhou para ela. Porém, a cerca de um metro, estacou subitamente. Emudeceram os sons meigos de ternura que até ali lhe saíam da garganta, e em seu lugar ecoou uma rápida sequência de gritos de advertência. O comportamento humilde e submisso da fêmea também se modificou. De súbito pôs-se de pé e afastou-se. O macho já não a cortejava, baixou a cabeça como um galo de combate e investiu contra ela. A fêmea desviou-se e atirou-se para o ar. Ele seguiu-a, aos gritos, ameaçando-a com o bico repetidas vezes.
            O impulso nupcial do maçaricão-esquimó transformou-se de repente em fúria agressiva. A fêmea era uma intrusa, em vez de uma companheira. De perto, ele reconheceu-lhe a penugem mais escura e a postura diferente. Embora algo semelhante, era um maçaricão da espécie norte-americana. Ele sabia, por reacções instintivas, criadas pela natureza para evitar acasalamentos estéreis entre espécies diversas, que não se tratava da fêmea que aguardava. Afugentou-a durante um quilómetro, com uma fúria tão apaixonada como o seu amor alguns segundos antes. Depois voltou à reserva e continuou à espera. A sua fêmea chegaria em breve.
(Cont.)