quinta-feira, 16 de janeiro de 2014

O último maçaricão-esquimó 3

(Cont.)
Nas zonas baixas havia ainda acumulações de neve, mas o sol brilhava quente e o Árctico palpitava já de vida. Havia alimento abundante, e o maçaricão comeu mais de uma hora sem interrupção, até o papo lhe ficar grotescamente inchado, na raiz do pescoço. Depois caiu em sonolência. Firmado sobre uma perna, manteve o pescoço virado para trás e o bico enterrado nas penas do dorso. Era mais descanso do que sono. Os ouvidos e o único olho descoberto permaneciam incansavelmente atentos às raposas e às corujas polares, que se aproximavam como fantasmas. No seu corpo, os processos metabólicos desenvolviam-se rapidamente, e meia hora de descanso equilibrou a perda de energia do voo de dez horas. O maçaricão estava completamente restabelecido.
            O verão polar era curto, e havia muito que fazer quando a fêmea chegasse. O maçaricão voou até uma elevação rochosa que se erguia a cerca de um metro do solo. Poisou e olhou à sua volta. Voara catorze mil quilómetros para atingir esta terra inóspita, escalvada e agreste. Uma região pelada, vazia. Bétulas e salgueiros, curvos e deformados, tinham resistido às tempestades e ao frio do longo Inverno. Durante decénios apenas lesmas rastejaram sobre eles, e não tinham crescido mais que quarenta ou cinquenta centímetros. A fronteira onde a floresta subpolar de pinheiros se tornava mais escassa, e onde começava a tundra norte-americana, encontrava-se oitocentos quilómetros mais a Sul.
            Em geral a terra era plana e húmida, tão salpicada de charcos pantanosos que agora, na primavera, metade ficava debaixo de água. Os pequenos montes de cascalho e os afloramentos rochosos que represavam os charcos e os impediam de transbordar, formando um imenso mar pouco profundo, estavam agora revestidos de espessos tapetes de musgos e líquenes, que reverdeciam muito rapidamente. Alguns centímetros mais fundo encontrava-se o gelo eterno, duro como a blindagem dum navio de guerra, as fundações geladas da terra.         
O maçaricão levantou voo, elevou-se lentamente e circulou em volta dos dois acres de terreno, com uma grande mancha de água e musgo, que demarcara como reserva. Por vezes, enquanto planava lentamente de asas abertas, fazia ressoar o seu canto nupcial, um gorjeio baixo e prolongado. Mas não havia no seu trinado qualquer jovialidade. Era antes um grito de guerra, um aviso a todos os que pudessem ouvi-lo: a reserva tinha um dono, a arder no fogo do acasalamento. Nada o atemorizava, e defendia a reserva para a sua fêmea que havia de chegar.
            Conhecia cada rocha, cada banco de cascalho, cada charco, cada arbusto, embora em tal aspereza e solidão não houvesse nada de notável que pudesse servir de demarcação. A fronteira norte e oeste era formada pela curva do rio que avistara lá de cima, e os outros limites não eram muito acentuados. Espalhados pelo chão, apenas uns blocos de granito com reflexos de pirite e mica, um par de galhos de bétula e amieiro e algumas manchas de água castanha. Mas o maçaricão sabia exactamente onde terminava a reserva. No meio havia um montão de rochas, tão seco que, em dez mil anos, desde que os glaciares haviam recuado, nem musgos nem líquenes tinham podido fixar-se nele. Porém, logo abaixo, onde se juntavam as águas escorrentes, o tapete era espesso e exuberante. E era aí, numa almofada de musgo, que a fêmea escolheria um lugar e escavaria um ninho achatado, em forma de prato. Cercá-lo-ia de folhas e ervas frescas, e nele havia de pôr os quatro ovos cor de azeitona.
(Cont.)