PROSAS DISPERSAS [Relógio d'Água, s.d.] reúne alguns dos principais artigos de Manuel Laranjeira sobre literatura, teatro, religião e o modo de ser português. O núcleo essencial da colectânea sai das PROSAS PERDIDAS, seleccionadas por Alberto de Serpa em 1959. (...)
Em Espinho, onde exercia medicina, Manuel Laranjeira conheceu Miguel de Unamuno, com quem manteve uma das mais fecundas conversas ibéricas.
Laranjeira suicidou-se em Fevereiro de 1912. Deixou uma obra poética, ensaística, teatral e ainda um diário.
Como ensaísta legou-nos algumas das contribuições mais inovadoras que Portugal conheceu neste século, nelas sendo visível a lucidez que só o desespero consente.
[da contra-capa]
PESSIMISMO NACIONAL
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Somos um povo civilizado... na aparência, porque a negra realidade é que quatro quintos da população portuguesa nem sequer sabe ler nem escrever. Vestimos à moderna, pretendemos viver à moderna, e pensamos e sentimos à antiga. Somos um povo pertencendo, pelo aspecto, ao tempo dos direitos do homem e pertencendo, na verdade, pelo espírito, aos tempos da pedra lascada.
Mas, objectar-me-ão: - em Portugal existe uma minoria reduzida, uma parcela, embora mínima, que acompanha a civilizaçãO moderna e vai nas correntes do pensamento contemporâneo.
Precisamente por isso.
Precisamente porque uma fracção do cérebro português acompanhou o espírito contemporâneo na sua gigantesca evolução; e precisamente porque essa minoria civilizada não soube ou não pôde impor-se à maioria da Nação e arrastá-la consigo nesse avanço progressivo; precisamente desse desnivelamento - é que deriva essa crise sobreaguda do pessimismo em que se está debatendo o povo português.
Essa harmonia que parece reinar na engrenagem social portuguesa é uma harmonia toda fictícia. A nossa organização social é uma organização mentirosa, sem estabilidade, sem unidade, uma ficção de engrenagem civilizada, encobrindo a torpeza de um parasitismo desenfreado e impudente.
Para quem não conhecer intimamente a vida portuguesa, o que se está passando neste malfadado país é incoerente, absurdo, inverosímil. E nem sequer é de espantar que lá fora, alguém que nos observe de longe, ignorante do nosso maquinismo íntimo e apreciando-nos apenas pelas nossas manifestações exteriores, visíveis, contraditórias até à mais requintada fantasia, nos declare duramente, brutalmente, uma nação morta, condenada a ser devorada pelo ventre esfíngico, insaciável das nações vivas.
Todavia para nós, Portugueses, comungando na vida portuguesa do dia-a-dia, assistindo ao desenrolar quotidiano da vida portuguesa, a situação é clara, precisa.
Ou devia sê-lo.
Somos um povo sem comunidade de pensar e de sentir; somos um povo percorrendo uma fase trágica de desequilíbrio, um povo cuja organização, de hora para hora, está perdendo a sua consistência. A alma portuguesa, sob a ilusória aparência duma unidade cívica, está sofrendo duma desagregação cada vez mais intensa.
Tão somente, se existem desagregações patológicas, definitivas, incuráveis, também as há passageiras, psicológicas, remediáveis.
É por isso que o nosso pessimismo é apenas (e felizmente!) o sintoma alarmante de que estamos atravessando uma hora perigosa, decisiva para os nossos destinos como povo.
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