segunda-feira, 2 de novembro de 2009

Portugalmente (70)

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E assim veio parar a este lugar, que um dia já se chamou Vale de Ladrões. Foi isso num tempo antigo, quando os ladrões tinham lugar marcado. Porque agora aproveita a liberdade aos meliantes, para levarem à letra o bíblico preceito. Cresceram, multiplicaram-se, confundiram-se entre a gente. E Valflor é o nome que agora tem, nenhum outro lhe assentaria melhor. Fosse visconde este viajante, e não chegasse tão ensombrado de espírito, aqui teria encontrado o seu Vale de Santarém. O verde fresco das vinhas aramadas, a cinza dos olivais, a mancha negra dos sobros além na asa do monte, e o primor destes pomares a derramar-se na encosta até à beira da estrada, tudo está numa harmonia suavíssima e perfeita.
Mas gaba-te, cesto roto! Debaixo das macieiras, todo o chão é um vastíssimo tapete de frutos a apodrecer, mais parece estragação de alguma tempestade. Intrigado e confundido, o viajante dirige-se à quinta, a branquejar ali no arvoredo. E é uma quinteira amedrontada que o recebe com maus modos, enquanto apazigua os cães de guarda.
- Cais trovoada, cais carapuça! A fruta vai para a Concentra, que a leva em camiões. E a do chão é para os gados dos pastores, por troca das estrumadas!
O viajante foi meter o nariz onde não era chamado e caiu na insensatez. Escusado sobressalto o da pobre da quinteira, que tanto se há-de temer de fiscais e burocratas! Embora saiba, de sobra, que só complicam a vida e não dão pão a ninguém, o viajante vestiu-lhes a pele e agora é tarde demais. Jura a si mesmo não voltar a ocupar-se de pomares, abandonados ou não. E é sorte sua não andar por perto o patrão da família! Acaba a desculpar-se da maçadora intrusão, enquanto deita aos cães um olhar desconfiado. Na retirada mira novamente os destroços da fruta. Por pouco inveja as ovelhas, tão regalonas que são.
Mas chega a Valflor recuperado e confiante, não sonhava encontrar um vale assim. As vinhas e as oliveiras caindo pelas encostas a revestir a paisagem mostram que o mundo mudou. Só para Adalberto a mudança é que não foi para melhor. Está ali encostado à galilé da capela de Santo António, apoiado nas muletas. E o viajante pára na grande sombra dos plátanos e estranha-lhe a condição.
- Tive uma hérnia aqui, mas não me correu bem!
Ao dizer isto aponta a um dos lados do ventre, põe-se a contar da operação no hospital. Ficou-lhe presa esta perna, mais tarde ainda lá voltou. Mas nunca mais dispensou os andarilhos.
Aqui não sabe o viajante o que fazer. Nem lhe sobram devoções de milagreiro, que já as consumiu todas, nem um milagre aqui fazia falta. O que faltou à hérnia de Adalberto foi um médico capaz de lhe concertar o corpo, sem ferir o que não carecia de concerto. Seria pedir demais, e ainda bem que o Adalberto tem este ar pacificado. Só uma tal resignação lhe servirá de conforto.
Ele há-de conhecer em Valflor os paços dum almirante que aqui houve, e Salazar visitava! São ali por trás daquelas casas, nem conhece ele outra coisa, se tanto lá trabalhou! Do Salazar é que já se não recorda. Mesmo que o tivesse visto não o podia diferençar, era um homem como os outros.
O viajante só discorda de Adalberto porque sabe, desta história, mais do que ele. Ouviu dizer que nos paços do almirante, em verões antigos, tinham lugar encontros de coração. Mas as damas vinham duas, e o Salazar era um só. A paixão dele era uma castelã, de sangue azul e modos adocicados, diplomática e discreta. O nome dela era uma cordilheira, só ele enchia a página inteira dos assentos. Mas o enlevo que mostrava ao sacripanta era apenas circunstância.
Já a outra era azougada, uma amazona. Desfolhava-se por ele e não controlava os impulsos do corpo, que era tão vasto quanto impaciente. Dizia ela que a vida são dois dias e lá teria razão. Porém ele fazia-se de sonso e não lhe dava saída, que lhe metia medo a mulheraça. E fazia-lhe lembrar a Carlota Joaquina.
Quantas vezes casos bicudos da história, como este do Salazar, encontram explicação assim ao virar da esquina! Isto vai ruminando o viajante, que foi procurar os paços dum almirante e já os encontrou. Abatidos, decadentes, a caminhar para a ruína, tão transitórios como as glórias do mundo. Foi isto um suspiro de amazona, ou alguma porta velha que rangeu?!
Quem em tempos conheceu bem estas escadarias foi Francisca, das Moitas de São Martinho, se derramou nelas as lágrimas melhores. Tinha três filhos mas só lhe sobraram dois, que o terceiro levaram-no umas febres, num sertão de África para onde foi à ventura. Um dia o mais novato andava nuns lameiros, a gadanhar o feno, ali às Águas-Vivas. E lá entrou em despiques com um farsola, por causa duma gaiata. O resto foi o vinho que o fez. Veio para casa mais cedo, foi buscar a caçadeira, e ficou à espera que o carro dos bois parasse no meio do povo. Não era o tal farsola que vinha a cavalo nele, empoleirado na carga, mas ele nem reparou. E vindimou o pai sem o saber, amaldiçoada hora!
A mãe Francisca ateve-se ao almirante, pois a quem... A justiça era tão longe, a vida era tão madrasta, o homem tinha emigrado sem lhe mandar um tostão… Andou que tempos a caminhar para aqui, por esses montes abaixo. Num taleiguito à cabeça trazia o melhor que tinha, que era nada. Guardava no coração uma esperança, nem sabia, de merecer uma atenção do almirante. Mas o filho apanhou a pena máxima, nunca mais se endireitou. E um dia a velha Francisca, perdida aquela ilusão, tomou-se do desalento e lá se deixou morrer.
Às vezes preferia o viajante não ter arcas da memória, esquecer tudo o que ouviu, não ter lembranças de nada. Ver as paisagens do mundo e contentar-se com elas. Sobretudo quando são assim floridas como estas de Valflor, que até serviram de alcova a Salazar.
(...)