quarta-feira, 11 de novembro de 2009

Portugalmente (73)

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O viajante deixa para trás a afogueada charneca da Coriscada e das Tomadias. Já passou o Valtalhado, e as ruínas da estalagem da Rosalina onde em tempos aportavam almocreves de caminho para Além-Doiro, e a veiga dos Areais, que ao mesmo tempo regala um espírito escarmentado e uns fatigados olhos. À entrada do país do vinho fino, as quintas do benefício instalaram-se no vale e os vinhedos tapetaram as encostas. E vão alastrando além, nos altos da Cornalheira, em terraços de plantações recentes. Apertado pelo tempo, o viajante mal passou e andou. Mas exultou finalmente, por encontrar na paisagem sinais de vitalidade.
Logo que alcança Foz-Côa, vai à procura das instalações do parque arqueológico. E se os auroques do rio não forem mais escorreitos do que a fachada de lata da casa dos arqueólogos, de pouco terá valido a maratona. A hospedeira lembra a suspensão das obras da barragem e a criação do parque, a preservação da história e do património antigo, como quem revive as origens do mundo. À curiosidade do viajante responde que no último ano catorze mil visitantes vieram ver as gravuras. E acrescenta que está finalmente pronto o museu de arte rupestre. Um dia destes vão inaugurá-lo, não há bandeira melhor à porta as eleições.
O viajante perdeu-se no caminho. Mas lá foi dar ao museu, no alto duma colina, sem saber o que perdia se o não tivesse encontrado. É um temível baluarte, de proporção desmedida, metade dele enterrado. De olhos fechados à vastidão da paisagem, o fortim não possui uma janela. Faz lembrar ao viajante o serralho dum sultão, dos que havia antigamente nos contos orientais, para arrecadar concubinas resguardadas das tentações do mundo.
Atarefado anda um empreiteiro, a instalar as artérias que hão-de trazer vida às entranhas do monstro. O viajante não pode imaginar o que vão expor lá dentro, se não for uma lição de história virtual, projectada num ecrã, como agora está na moda. Cavalos de animação a beber água num rio, uns indígenas hirsutos à lançada num auroque, um artista a picotar uma cabra numa fraga. O viajante não sabe, mas já nada lhe provoca admiração. E abandona o olhar no panorama, o espelho do Douro a um lado, a outro a fita do Côa, entre os dois uma estação de comboios que deixaram de passar. Neste reino de colinas encantadas, onde há milénios perdidos já se honrava a natureza, o que ficou rio acima depois das obras suspensas é a lição mais-que-perfeita de como devastar uma paisagem. Encostas escalavradas, alcantis, falésias cruas, terraplenos, escombreiras, valagões e desaterros, rasgões de estradas sem fim, tudo ao molho e fé em Deus no mais completo abandono. Muito mais que um património mundial, o que a suspensão das obras ofereceu à humanidade foi um monumento à destruição ambiental, em nome da cultura. E o viajante ficou aqui a saber que não basta ser um homem ilustrado, cosmopolita, humanista. Para ser um bom governante, convirá ter pés assentes na terra e rodear-se de gente de juízo, se a houver.
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