quarta-feira, 4 de novembro de 2009

Portugalmente (71)

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Terra afamada de vinhos é o Carvalhal, aconchegado aqui na fundeira do vale. E resistiu aos incêndios de há uns anos, que deixaram estes montes na miséria que se vê. Mas não entraram no povo, Deus louvado, é o que a dona Agostinha desabafa ao viajante. As cubas de cimento, que lá ficaram atrás com aspecto abandonado, são da adega cooperativa, que há uns anos deixou de trabalhar. Chegou a vir para aí um espanhol. Mas apesar dos bons vinhos a adega não se salvou. Agora os pequenos vinhateiros vendem as uvas ao desbarato, como calha. E os mais velhos lá lhes vão metendo a mula e o arado, mais por vergonha e pelo amor que ainda lhes guardam. Mas se fizessem as contas...
Para escapar a tão mesquinhos assuntos a dona Agostinha vai lá dentro, já volta e traz uma chave. Quer mostrar ao viajante a igreja do Carvalhal, lá tem as suas razões. É uma generosa fábrica com ares de rococó, e tem na capela-mor um tecto surpreendente de caixotões pintados. Mais um pouco e era aqui a corte celestial. Tantos painéis de madeira vieram de muito perto, dum convento que os franciscanos tiveram nos Vilares, para os lados de Marialva, no tempo em que em Portugal havia mil e trezentos, os de São Francisco e os mais. Quando se acabaram as clausuras, por ordem do Mata-Frades, o convento ficou abandonado. Ora roubar por roubar, o povo do Carvalhal foi buscar estes painéis. E foi o melhor que fez.
Ao viajante cativa-o a frescura desta nave, e a corte celestial dos santos todos, e a simpatia da sua acompanhante. Mas tem à sua espera os caminhos do mundo. Segue por uma estradinha à beira duma ribeira, que toda a vida foi carreteira de mulas e hoje é uma fita macia que os fundos europeus aconchegaram. É tão estreita e mesquinha que só um carro elegante cabe nela. Mas o viajante não quer outra coisa. Deixa para trás um campo de escombreiras, e a lagoa dumas minas que houve aqui a céu aberto, e a escassa vedação que lhes guarda as ameaças, com caveiras amarelas. Depressa lhe dão os olhos na muralha de Marialva, a branquejar além no horizonte, há séculos que está à espera.
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