sexta-feira, 6 de novembro de 2009

Portugalmente (72)

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Marialva são três momentos da história, três páginas dela expostas aos olhos do viajante. A primeira é a Devesa, espraiada na charneca. Lado a lado com as vivendas modernas, do peregrino gosto conhecido, guarda a Devesa sinais de algum alento burguês de há cem anos. No desafogo das fachadas de granito com amplos varandins, nos telhados de alto encume que por então se faziam, nos armazéns de comércio de largos portões de ferro. Mas o que veio salvar as frontarias, e as praças e estes recantos, foram os ventos da Europa, e o programa das aldeias históricas dos fundos de coesão.
Há-de parecer que a Devesa é uma criação moderna, e não no é, pois constou ao viajante haver por aí sinais bem mais antigos. De povoamentos romanos, de vilas agrícolas com mosaicos de Baco, do tempo dos imperadores. Nem admira, que sempre o trigo se quis à beira duma ribeira. Porém deles não sabe dar notícia o dono deste café. E o viajante resiste às seduções de Baco, que tem muito que fazer. E já lá vai, monte acima.
A Vila, fora de muros, é a página segunda, e nela a Corredoura está deserta. O casario em volta sofreu restaurações, ao menos os telhados e as fachadas, que por dentro não se arrisca o que lá vai. E agora mesmo pararam para o almoço uns artistas que andam a reformar a igreja de S. Pedro, posta aqui há muitas centenas de anos sobre uma necrópole medieva.
Passa o solar dos condes de Marialva, que os marqueses só mais tarde cá chegaram, e os alpendres da casa do Leão, que espreita lá de cima dum corrimão de pedra do tempo das caravelas, e a torre sineira da igreja de S. João, uma obra dos templários que ficou encastrada na muralha. Isto antes de os cavaleiros serem homiziados, do grande poder que tinham, e os seus tesouros levados a custear a cruz de Cristo, que nos empurrou para a Índia a cavalo no vento. Andam ecos de aventuras africanas a pairar nestes balcões, quem sabe se este brasão não foi conquistado a ferros nas campanhas de Azamor.
Há quinhentos anos era Marialva assim, mesquinhas habitações, mesquinhas hortas com figueiras, mesquinhas as ruelas. Um dia vieram os fundos europeus a dar vida a esta praça, onde dormitam jipes reluzentes de famílias que vieram de longe, à procura de um sossego. Salvaram do abandono estas casas de turismo com piscinas no terraço, e hão-de salvar da penúria o viajante, que nelas tem à espera um cardápio de luxo onde apazigua a fome. A bem dizer não precisava de tanto, mas um dia não são dias.
A porta do Anjo da Guarda é a entrada principal da Cidadela, que é a página terceira. E o viajante, que não faz ideia do que serão mil anos, encontra nela alguma sugestão. Manuel é a única coisa a destoar lá dentro, porque não tem mil anos, embora chegue a parecê-los. Degola aqui umas ervas ruins, levanta além uma pedra caída. Partilha com o viajante a pouca sabedoria, aqui é a porta do Monte que dá para os lados da forca, além abaixo a de Santa Maria, entre ambas a torre dos Namorados, o pouco que dela resta. E do lado do sol-posto é o postigo da traição, atrás daquelas igrejas.
O viajante faz a ronda das muralhas, segue o desenho das ruas e das construções que há nelas, comovem-no estas paredes, um dia já foram casas, de áravos, de romanos, de godos, de muçulmanos, de cristãos, outra vez de maometanos, de portugueses enfim. Hoje são apenas logradouros onde estremecem velhas oliveiras, o tempo chega para tudo. Este paço, na praça do Pelourinho, já foi poder e comando, foi cadeia e tribunal, há cem anos era escola. Hoje é a cara do tempo, e as velhíssimas estrelas da calçada as rugas dele.
No terreiro das igrejas, que são duas lado a lado, uma seria demais. E os seus donos estariam no inferno, se inferno fosse o castigo da malfeitoria humana. A investigação nunca foi feita. Porém os templos assentam num terrapleno que certamente cobriu construções mais antigas. E o viajante tem pena. Tinham mais bênção as casas e as ruelas, e as calçadas em estrela que os pés da gente pisaram, do que estes templos com púlpito exterior, onde nem sempre se deu voz à verdade, e lhes ficaram plantados em cima.
Ali ao lado, na faceira dum penedo, estão inscritas as palavras dum mestre de viajantes, que um dia aqui passou e cedeu às emoções. E se este agora não perde a compostura é por estreme pudor, que onde já correram lágrimas ao mestre não se aventuram as dum aprendiz. Deixa para trás a Cidadela, abrigada no regaço destes montes que há mil anos a embalaram. São belos e comoventes. E embora torturados pelos incêndios e pela insânia dos homens, hão-de aconchegar aqui outros mil anos esta bela adormecida.
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