Despejava eu, tranquilo, o carrito das compras na bagageira do panzer, no parque do hipermercado. Praticamente de costas, mostrava um perfil enviesado, difícil de analisar. Mas ele foi decidido e peremptório. Parou-me ali ao lado, abriu o vidro do Corsa, esticou o pescocil e pôs-se a chamar pelo Jorge, que é o meu nome.
Eu lá fui ao seu encontro. Debrucei-me na janela, vi-lhe o ventre dilatado a roçar-se no volante, observei-lhe as feições. Do arquivo não me saiu nada parecido.
− Desculpe, mas...
− Sou o genro do Teixeira! Tenho uns quilitos a mais, umas entradas aqui, que o tempo passa... Mas lembro-me bem de si!
E lá insistia, a apresentar-me a nuca, as misérias do cabelo. Eu voltei a mirar-lhe os trinta anos, o descair do olhar, a silhueta estranha. Voltei a remexer cá dentro nos ficheiros, e nada.
− Genro do Teixeira?! Mas qual deles?
− O funcionário do banco! Primeiro no Canidelo, mais tarde nos Francelos!
Lembrei-me do Abadesso, das traduções de alemão, mas do Teixeira do banco nem sinal.
− Não há nenhum Teixeira que eu conheça... nunca fui ao Canidelo...
− Então você onde mora?
− Lá para as Antas!
− É daí, fui lá carteiro! Você não se chama Jorge?
− É verdade!
E fui cedendo. Têm-se visto verdades mais atacadas de enigma do que as fábulas da esfinge.
− Pois é daí, eu despachava o correio!
Ele às vezes reparo nos carteiros. Trazem-me cartas do banco, os avisos dos impostos, trazem notícias longínquas de guerras administrativas que vou sustentando há décadas. Mas, de quantos conheci, nenhum carteiro era assim.
− Trabalho agora em Alverca. Conhece Alverca?
− Muito bem!
Aterrei lá muita vez. E um dia fui ver o Museu do Ar, que entre espólios mais concretos me guarda a mim bocados do canastro.
− Ele é um bocado longe, andar abaixo e acima!
− Pois compreendo...
Sinto-me à entrada do delírio. Carteiro ou não, eu nunca o vi mais gordo. Mas ele é novo demais para sofrer de paranóias. E eu, que já estou por tudo, passo em revista as últimas semanas. Tenho as côngruas em dia, não me lembro de nenhum crime maior, e pecados só os do pensamento. Ele continua prazenteiro, fala-me outra vez de Alverca, jura que lhe sou familiar.
A instâncias minhas lá nos despedimos. E eu fico-me a pensar em espiões misteriosos, em conspirações maradas, a acreditar em bruxas, eu sei lá. Não tivesse a alma sossegada, e quem entrava em paranóias era eu.