O pedido de um utente põe-me de novo nas mãos o NÓ CEGO, de Carlos Vale Ferraz. Toda a vantagem é minha. Porque, a um lado, a sua leitura me compensa das neblinas confusas de certas almas volúveis, das variações sobre a parte vaga da vida, das inanidades de esplanada e das improváveis excitações de cama, que é no que mais tropeço quando vou à livraria. E a outro lado me traz de novo este mergulho na violência da guerra colonial, e na realidade dum tempo que foi nosso, tão impiedoso e tão inverosímil que não se acredita nele.
Uma característica da obra literária é ser sempre mais vasta do que o pouco que mostra. É exprimir muito mais do que aquilo que afirma. E se a linguagem de NÓ CEGO nem sempre é a mais elaborada e cativante, ela será, quem sabe, a mais adequada à expressão duma realidade em si mesma tão crua, que deixa sangue nas mãos com que mexemos nela. A realidade surreal da doença do império, a realidade absurda da guerra das colónias, a dolorosa realidade dos figurantes que a fazem, a realidade dum país alienado de si.
A tropa que comandava não se distinguiria, no porte e na vestimenta, da rufiagem engajada há quatrocentos anos no cais de Lisboa, destinada a contribuir anonimamente para a gloriosa epopeia dos descobrimentos, por causa dos quais estes herdeiros ali estavam a malhar com os ossos (…). Esta tropa maltrapilha reclamava com impaciência do atraso em lhe ouvir a ordem de partida. «Vamos embora, meu capitão.»
Não é pequena a minha admiração por um autor que, passada a vivência de semelhantes experiências, ainda encontra força e sabedoria para no-las dar a conhecer. Muitas obras têm sido escritas sobre esses tempos, algumas delas com o mérito e o brilho que é forçoso reconhecer neste NÓ CEGO. Enfileirando meia dúzia delas, ao seu lado andarão Os Cus de Judas, de Lobo Antunes, Cortes, de Almeida Faria, Costa dos Murmúrios, de Lídia Jorge, Percursos: do Luachimo ao Luena, de Wanda Ramos, e uma outra cujo título não podemos desvendar. Saída a lume há uns meses, não mereceu uma letra de divulgação da parte de críticos, nem de publicistas, nem da gente que a seu cargo teria informar o leitor do que se vai publicando. Nem boa nem má notícia, nem preta nem branca.
É sabido, enfim, que nem o amadorismo, nem a incompetência, nem a síndrome da confraria paroquial são coisas de estranhar na nossa pequena terra. Mas o melhor é aceitarmos que alguma razão houve, e pesada bastante, para assim impor tão radical silêncio. Guardemo-lo nós também.