domingo, 25 de junho de 2017

Mestre

Os computadores e eu
 
"Uma tarde em Marimba, na Baixa do Cassanje, no ano da guerra de 1973, mostrei ao soba Macau (Sebastião José de Mendonça Macau) um boneco da minha filha Zezinha, então bebé, um veado de pano que se puxava um cordelzinho na barriga e soltava uns guinchos rachados. O soba ergueu às copas das mangueiras a bengala do seu poder, largou a fugir aterrado, e eu comecei a rir até que de súbito entendi e o riso se me secou na garganta. Joguei em pânico o tenebroso veado ao chão e desatei a correr atrás do soba pelo capim fora.
Aquele homem velho de infinita sabedoria, capaz de fazer navegar o seu povo incólume entre a tirania da polícia e as exigências do MPLA, percebeu mais depressa que eu a infinita perversidade das máquinas, mesmo as ocultas, nas tripas de algodão de um animalzinho de brincar. (...)
Percebera que as máquinas e os aparelhos nos detestam e que a condição da nossa sobrevivência consiste em nos afastarmos deles, não os ligarmos à corrente, não lermos os manuais de instruções com diagramas explicativos em oito línguas diferentes todas elas incompreensíveis, não cedermos ao desafio de carregarmos em nenhum botão.
No que me diz respeito não sei mexer num único desses símbolos do progresso, do aspirador ao apara-lápis, do micro-ondas ao blequendeker, do vídeo ao saca-rolhas, que levanta a pouco e pouco duas pérfidas asinhas de metal. (...)
Julgo não ter medo da morte, não ter medo do dentista, não ter medo da lepra, não ter medo dos políticos, mas tenho medo dos computadores. (...) Já me engoliram um romance inteiro, já me transformaram capítulos em poesia experimental, já retiraram ossos aos meus parágrafos, reduzindo-os a um puré de adjectivos. Por isso escrevo à mão. (...)
E os computadores imagino-os rugindo numa jaula de circo, sonolentos e de unhas de fora, só possíveis de enfrentar de botas altas, alamares e chicote na mão, obedecendo a contragosto às ordens de quem se aproxima deles, tocando-lhes com um pau para os obrigar à complicada proeza de uma frase escorreita. E nos momentos de inconsciência em que carrego numa tecla a pele escurece-me, os ombros curvam-se-me, a camisa dá lugar a um pano do Congo, os pés descalçam-se-me de meias e sapatos, os ruídos de África inundam a sala, ergo a bengala do meu poder às copas das mangueiras em que os morcegos se penduram todo o dia de cabeça para baixo e largo a fugir, aterrado, capim fora, na direcção do rio onde os crocodilos dançam à flor do lodo, à espera da imprevidência dum cabrito."
[Ninguém escreve uma crónica como o Lobo Antunes. Este campo é dele.]