segunda-feira, 1 de fevereiro de 2016

Pobreza e culturas dela

[A propósito dum belíssimo filme inglês que aí andou há muitos anos, e tive a sorte de encontrar na FNAC. Sobre uma novela romântica de Thomas Hardy, Far from the madding croud
Na atmosfera rural inglesa da pré-revolução industrial, há um cão de guarda que enlouquece e empurra o seu rebanho para a escarpa, há uma noiva que se engana na igreja onde um granadeiro a espera até desesperar, há uma donzela com apurado sentido feminista, independente e pouco convencional; "é difícil para uma mulher definir os seus sentimentos, numa linguagem sobretudo feita por homens, para expressarem os seus"; há um granadeiro que se afoga no mar e é salvo por pescadores, e um pastor que nunca faz perguntas...
Foi isto num tempo em que o mundo não era ainda uma colónia cultural americana globalizada e estéril, a ruminar pipocas e barris de coca-cola, enquanto palita os dentes e guarda a arma no coldre.]

 À sombra dos freixos altos, os gadanheiros limpavam os barranhões do almoço, à volta duma toalha. E depois montavam ali as armas, espetadas no chão à margem da ribeira, para picarem as gadanhas a martelo. No fim puxavam-lhes o fio, com uma pedra que ripavam da água dum corno que traziam à cintura. Por um migalho ainda fechavam os olhos. Mas o feno estava à espera, até ao fim da jornada que acabava em cantorias a caminho de casa. Guardo disto um filme na lembrança.
O Diamantino tinha andado pelo Brasil e um dia voltou à aldeia. Era assinante d'O Século, que chegava pelo correio com alguns dias de atraso. E tinha um cavalo grande, olhava-nos lá de cima quando passava a cavalo. 
Não sei onde arranjou ele uma máquina daquelas. Era Krupp, toda em ferro. E tinha um braço que mordia o feno, e se movia à largura do corte, e um assento onde o segador montava. O cavalo grande era a força que a arrastava, lameiro fora.
Num Verão experimentou-se a segadeira, não vieram gadanheiros, nem gadanhas, nem as armas de as picar. Mas o trabalho dela não satisfez ninguém, que desperdiçava os fenos. Soube mais tarde que aquele ferro todo eram restos dos canhões, da guerra que andara longe. 
Muitos anos depois viria a descobrir que tudo isto era um filme da pobreza, com uma cultura lá dentro. Hoje sei que a miséria ainda aí anda. Só desapareceu foi a cultura dela, sem que outra tivesse vindo