quarta-feira, 8 de julho de 2015

Talhas

Era uma catedral gótica, é o que hoje me faz lembrar. Mas nas férias do Natal a professora sucumbiu a um resfriado, de que não recuperou em tempo útil. De forma que, para não perder o ano, passei eu a ir à escola da freguesia vizinha, a uns três quilómetros de caminho.
Do farnel fazia parte uma cabaça minúscula, onde levava um refresco de café de chicória que a minha mãe fazia como só ela sabia. Mas os colegas viam-na cheia de vinho, e olhavam-me com muito respeitinho.
Um dia um deles aproveitou um descuido, foi-me ao vinho e desvendou o segredo. Era água! E lá se foi, água abaixo, a minha reputação. Assim fiquei a saber que as boas famas custarão gerações, mas levam um minutito a desfazer.
Mas adiante, que já veio a Primavera, o céu ficou azul e quentinho, e os campos estão floridos. Houve mesmo uma perdiz que foi fazer o ninho além na ribanceira, debaixo dum silvado. Todos os dias eu ia visitá-lo, todos os dias lhe contava os ovos, todos os dias via a ninhada crescer. 
Um dia encontrei um laço armado logo à entrada. Era um nó redondo e corredio, feito do pêlo do rabo dum cavalo, onde a perdiz meteria o pescoço. Só que ela não caiu nessa. Mal se deu conta, abandonou o ninho. E foi assim que um lagarto teve um dia o rancho melhorado.
Passou-se isto há muitos anos, numa terra em que hoje sobram as talhas de castanho dum altar-mor na igreja, e as galas perdidas do solar dos Brasis, que uns mestres entalhadores esculpiram. Num mausoléu onde Portugal ficou embalsamado no meio dum sertão, atafulhado em ouros do Brasil.