domingo, 12 de julho de 2015

Ainda a infinita capacidade de ilusão

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- Eduardo Lourenço: O que unifica neste momento a humanidade é uma prática. Da ciência que conduz à acção. A ordem do mundo que estamos a construir é essa pulsão do conhecimento que sempre existiu, mas que, com as metamorfoses que a ciência moderna tem conhecido, atingiu a hegemonia absoluta. A ficção científica, imaginada por autores como Ray Bradbury, está a acontecer-nos. Deixou de ser ficção, para estar inclusa nas práticas mais básicas da Humanidade, como se fosse uma segunda natureza, quando na verdade é tudo artificial.
- Jornalista: E isso modifica realmente os seres humanos? 
- A palavra de ordem da civilização ocidental foi dada pelo Discurso do Método. Ou seja, proceder de tal maneira, que sejamos capazes não só de compreender, mas de intervir e exercer poder sobre a natureza. Dominar o mundo que é nosso. Deixámos há muito de funcionar sob um paradigma religioso, em que o nosso destino era colectivo e possuidor de um sentido. A Humanidade inteira era conduzida pela Providência.
- Havia um Criador, que depois tomou conta de nós.
- Que nos criou em função de um bem a atingir. Mas depois passou a ser o Homem - e a Reforma está na origem disso - o criador do seu próprio futuro. O problema é saber se este sonho cartesiano levado ao extremo, em que deixamos de ser filhos da natureza para sermos seus donos, é um exercício impune.
- Parece que não, sob o ponto de vista do equilíbrio ecológico.
- Talvez a capacidade que temos de manipulação da natureza venha a virar-se contra nós, porque afinal também fazemos parte da natureza. (...) Não sabemos em que ponto estamos da História do Homem.
- Tudo isso vai alterar a forma como nos organizamos como sociedades? Seremos mais individualistas?
- Por um lado estamos a participar de qualquer coisa em comum. Nunca como hoje partilhámos formas de viver, comportamentos, ícones. Por outro lado estamos mais solitários.
- Porque, para sobreviver, já não precisamos uns dos outros?
- Por mais dependentes que estejamos dos artefactos que inventámos, nós só temos existência em relação aos outros, no espelho dos outros. Não há nenhuma coisa mirífica que possamos inventar que suprima a única relação que nos importa a cada um de nós, que é a de uns com os outros.
(...)
- Mas isso implica aceitar que pertencemos a um outro mundo.
- Significa que não nos podemos suportar sem essa espécie de saída imaginária que a religião confere. Marx, numa fórmula famosa, disse que a religião é o ópio do povo. É uma frase profunda, que podemos interpretar de outra maneira: a condição humana é tão trágica na sua essência, que precisamos de uma qualquer morfina, que nos faça esquecer que somos seres para a morte. A religião é isso. (...)»
[in Revista LER nº 138]